Que os jornais são sumamente desnecessários, e sem mais virtude que a enfatuação, não é um axioma novo. Na Viena de Wittgenstein, Karl Krauss fez nome e fama postulando que os jornais eram injustificáveis. A própria obra do bruxo da Calle Maipu, Jorge Luis Borges, traz postulados bastante terrosos, cheios de conjecturas e pré-fixações sobre a desnecessidade do jornal e da imprensa. “A imprensa, agora abolida, foi um dos piores males dos homens, já que tendia multiplicar até a vertigem textos desnecessários”, notou o argentino. Ou por outra: “não me envergonho de ter querido ser jornalista, rotina que agora me parece trivial. Lembro ter ouvido Fernandez Irala, meu colega, dizer que o jornalista escreve para o esquecimento e que seu desejo seria escrever para a memória e para o tempo”. E no conto “Avelino Arredondo” Borges veio com o extrato: “ávido leitor de jornais, custou-lhe renunciar a esses museus de minúcias efêmeras”.
Outros trissectores de ângulos cegos da mídia vieram usando por muitos anos na Universidade Columbia, nos EUA, o dictum de Adlai Stevenson, o finado e refinado democrata, para quem “a imprensa separa o joio do trigo e publica o joio”.
O problema é que esses adágios tomaram as ruas e os barões da mídia já divisam, de suas torres, os aldeões subindo as ladeiras com suas tochas incandescentes e brandindo, como Moisés ensandecidos, o fim da imprensa.
Mas há quem diga que entregar a confecção da notícia para o populacho é o mesmo que entregar o berçário ao rei Herodes. Mas não foi assim que pensou o Le Monde, pioneiro ao ter criado, há mais de dez anos, o primeiro jornal feito por leitores tutelados por um único editor de carreira, e cujo link é www.lepost.fr.
O vocábulo “fato”
É por causa dessa crise generalizada que o jornal O Globo anunciou que na terça-feira (24/7) começa a trazer um debate a preceder os 87 anos de fundação do jornal, a serem comemorados domingo próximo com uma reforma gráfica.
Nos EUA, um site mede diariamente a armagedônica agonia que entrecerra os jornais. O site se chama Paper Cuts e registra 1.171 demissões no mercado de jornalismo impresso dos EUA em 2012 – número um pouco abaixo das 1.500 vagas cortadas em jornais brasileiros até julho deste ano. Lentamente, lá fora já acontece o que ainda não começou a acontecer por aqui, e é por isso que os nossos jornais ainda sobrevivem. Os anúncios no Google nos Estados Unidos já são maiores do que toda a indústria de jornais impressos junta. Em 2011, os jornais americanos faturaram US$ 23,9 bilhões em anúncios, contra US$ 38 bilhões abocanhados somente pelo Google. Só no ano passado os anúncios para jornais impressos nos Estados Unidos encolheram perfazendo uma perda de mercado da ordem de US$ 1,9 bilhão.
Veja como as coisas caminham: quando Gutenberg inventou a imprensa por volta de 1450, um monge levava um ano para copiar um único exemplar da Bíblia. Em seu primeiro ano de trabalho, com sua máquina de impressão, Gutenberg produziu 180 Bíblias. Antes disso, a Universidade Oxford, por exemplo, possuía apenas 122 livros, e o preço de cada um equivalia a uma fazenda de 200 alqueires. Por volta de 1501, cinqüenta anos após a invenção de Gutenberg, aproximadamente um milhão de cópias de 27 mil livros editados já circulavam pela Europa, e segundo o Oxford English Dictionary, o vocábulo “fato” aparece na língua inglesa apenas no século XVI, cem anos após a invenção de Gutenberg e com a seguinte definição: “Algo que realmente ocorreu, com testemunho particular, mediante observação ou testemunhos autênticos, sumamente opostos às meras inferências.
Todo esse conhecimento se espraiou ao paroxismo de matar os próprios donos do conhecimento –ou difusores dele, tanto faz como fez.
Ladeira abaixo
É uma questão de tempo que os blogueiros não jornalistas comecem a dar credibilidade às suas páginas, deixando de fazer inferências partisans, em prol de relatos tidos como tecnicamente imparciais. Quando chegar essa fase, os jornais estarão definitivamente enterrados porque o público terá apreendido tudo aquilo que ele sempre demandou do jornalismo feito por jornalistas: isenção, ética e o mínimo de correlação com os fatos.
O mercado já reage: as vagas de jornalistas eliminadas nos jornais dos EUA desde que o centro de monitoramento Paper Cuts começou a contagem, em 2007, são de 21.008 em quatro anos e meio. O recorde foi em 2008, com 15.992 cortes. Um dado fornecido por Rosental Calmon Alves, tido e havido como o Umberto Eco do século 21, revela a redução de 21% no número de matérias submetidas ao Prêmio Pulitzer na categoria “reportagem investigativa”, ao comparar 1984-2010. E 43% de redução na categoria jornalística chamada de “interesse público” no mesmo período. Em 2006, 37% dos 100 maiores jornais não tinham repórteres investigativos: e só deles 10 tinham quatro.
O público quer fazer jornal ele mesmo.
O ouvinte quer fazer música ele mesmo.
O público quer fazer política ele mesmo. O século 21 trouxe o mundo do DIY, Do It Yourself: e as ONG's implodem o conceito tradicional de partido politico.
A globalização não foi a impostura universal de interesses massificados: foi a projeção global de interesses locais. O “quer ser universal fale de sua aldeia”, de Tolstoi, é a bola da vez.
Marshall Mc Luhan morreu: agora o e-mail é a mensagem.
O populacho, seja metido ele a músico, jornalista ou político, não quer mais intermediários.
O mundo virou um corta e cola dos diabos. O mundo virou um agenciamento de formas, como notava Jean Laude. O Homo sapiens virou o rei do bric-à-brac: ele quer, sozinho, recortar e colar:desde que ele mesmo construa as pecinhas da bricolagem.
A morte dos jornais vem acompanhada de outros fenecimentos não tão díspares.
Vejamos a música: é cada vez mais preocupante o cenário da indústria fonográfica mundial. De acordo com a IFPI, entidade que reune empresas do setor musical, em 2009 houve uma queda de 7% em relação ao ano anterior, de 2008 no número de vendas de musica física (CD por exemplo). Em contrapartida, as vendas de música na forma de faixas digitais tiveram um enorme crescimento de 9,2% totalizando um lucro de US$ 4,3 bilhões. Outro setor que também foi prejudicado é o de entretenimento musical que utiliza a publicidade nas rádios e a realização de shows: a queda desse setor foi de 8%.
Música e jornais, por enquanto, descem ladeira abaixo.
O “just say no”, adágio criado por G. Gordon Liddy, papa antidrogas sob Nixon, na DEA, virou “just say know”.
Cada um quer saber fazer o seu: e tem feito.
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[Claudio Julio Tognolli é jornalista]