A nova cara que o jornal O Globo apresentou no fim de julho simboliza uma clara aposta da empresa na sobrevivência do jornal impresso, contrariando antigos prognósticos sobre a inevitabilidade da migração para o mundo virtual (ver, neste Observatório, “Além das aparências”). Nesta entrevista, o editor executivo do jornal, Orivaldo Perin, apresenta argumentos para justificar sua afirmação de que “a vaca leiteira das empresas de comunicação ainda é o impresso”, embora reconheça que a era inaugurada pela internet é marcada pela incerteza. Diferentemente da propaganda em torno da reforma gráfica, diz que os jornais não têm de se reinventar: devem continuar a fazer o que fazem, porque organizam, hierarquizam e consolidam a informação já veiculada, tendo em vista que a natureza da internet é a dispersão.
Perin fala também sobre a integração da redação, que formalmente aboliu as fronteiras entre o “pessoal do impresso” e o “pessoal do online”, sobre as dificuldades desse processo que leva ao convívio entre “nativos do papel” e “nativos digitais” e sobre o desenvolvimento da tecnologia adquirida pela empresa, que no futuro permitirá a produção automática de várias versões para um mesmo texto redigido pelo repórter.
Sua entrevista:
Eu queria que você começasse falando sobre as diferenças do trabalho em redação e das perspectivas do jornal antes e depois da internet.
Orivaldo Perin– Antes da internet, projetar um jornal de papel era simples: você fazia um estudo de mercado, via o público que queria atingir, o mercado de anunciantes era fácil prospectar, era fácil fazer um projeto de jornal impresso e calcular o tamanho do lucro dele, o ano em que ele começaria a dar retorno… você tinha certezas. A internet foi aos poucos embaralhando isso aí. Hoje é impossível você sentar, chamar um grupo de técnicos, analistas, e dizer, “olha, isso aqui vai dar certo daqui a tantos anos”, porque a internet jogou um névoa, você não consegue ver através dela. Então, em relação ao mercado editorial, nos anos 70, 80, você tinha certezas absolutas em relação ao jornal. Nos anos 90, quando a internet começou pra valer, havia uma desconfiança em relação a ela: vai dar certo, não vai… E no início deste século a internet começou a se consolidar – lá fora também. Nesse período de transição havia uma crença de que o jornal de papel iria acabar. E a gente achava que estava com os dias contados, quer dizer, ou você se moderniza e se digitaliza, ou você vai acabar.
E agora?
O.P. – O tempo passou e a gente viu que não. O que aconteceu depois do ano 2000? É claríssimo esse movimento. A indústria de informação, que são os grandes jornais impressos, eles viraram os donos do mercado de informação na internet. A internet por natureza é uma coisa pouco confiável…
Como assim, em que sentido?
O.P. – Qualquer coisa você põe lá. A Wikipédia mesmo, você chega lá, enfim… a marca do papel é o que passa credibilidade e passou a ser fundamental também na internet. Quem quer se informar na internet busca credibilidade também. A marca do papel se transportou pra internet e hoje os grandes sites de informação têm a tradição de uma marca de papel por trás. Hoje os jornais não têm mais medo da internet, como já tiveram há dez anos. Porque a internet carece de credibilidade. Mas agora você precisa saber como ganhar dinheiro ali. Por enquanto nenhuma empresa jornalística que transfere sua credibilidade para a internet está ganhando dinheiro com ela. O New York Times é o exemplo mais bem sucedido, os últimos números que eu vi mostravam que as assinaturas digitais correspondiam a 15%. Aqui o resultado que nós temos, no ano passado, é de 4%. E com os outros jornais é mais ou menos a mesma coisa. No Brasil a vaca leiteira das empresas de comunicação ainda é o impresso. E a impressão que a gente tem é que isso ainda vai durar alguns anos. Se esse jogo vai virar lá na frente também não dá para você fazer prognóstico nenhum hoje. Mas a indústria produtora de máquinas impressoras, rotativas, está em expansão, se modernizando e se adaptando às novas necessidades do leitor do impresso.
Isso contradiz toda essa onda do fim do papel, e-book substituindo livro…
O.P. – Contradiz uma coisa que foi dita lá atrás. Eu acho que hoje o jogo está equilibradíssimo, inclusive está favorável ao papel. Não é só a gente que está se redesenhando, os grandes jornais no Brasil já se redesenharam, a gente até foi o último a fazer isso. E os jornais impressos, quando se redesenham, estão procurando sua semelhança com a sua presença na internet. Você vê lá o nosso site, a gente centralizou o logotipo e tal… A Folha está muito parecida com o que ela é no papel, o New York Times é a cara do impresso.
Então o movimento é o contrário, é dar uma cara de impresso à internet.
O.P. – Exatamente. O visual do jornal está no site e vice-versa, que é para o leitor se identificar ali. Quando um jornal de qualidade passa para a internet, ele também precisa ter audiência para poder, em tese, ter retorno publicitário. Como é que faz isso? O jornal de qualidade em tese é classe A, B, um cara mais intelectualizado, de nível superior. Na internet não, é um leque muito mais amplo, e na internet as notícias mais lidas são as do mundo cão, mais populares, mais televisão, celebridades. No nosso caso o que puxa mais audiência é uma coluna de televisão, a outra é um blog de bizarrices, “Page not found”. Aí você, num jornal de qualidade, entra num conflito: o que eu faço, desço o meu nível para ganhar audiência? Jamais O Globo vai fazer um negócio desses. O site do Extra tem mais audiência que o nosso, o perfil dele, a natureza já é semelhante à do leitor de celebridade, televisão. Esse é que é o conflito hoje. O leitor de internet não é o mesmo que o do papel. Não é o perfil socioeconômico.
Quanto tempo em média as pessoas ficam no site do Globo?
O.P. – Nosso tempo de permanência é baixo. É o perfil do leitor de internet, esse cara que é um beija-flor, não é um cara que está lendo filosofia, política, não é isso.
Isso não contradiz a aposta na matéria longa na internet?
O.P. – Pois é, essa é uma pergunta que tem aí: jornal de papel versus internet. É a pergunta que vale um milhão, quem responder fica rico. Essa geração que hoje está entrando na internet está aprendendo a se informar de um jeito diferente do tempo em que só tinha papel. No nosso tempo você lembra como era: quando você entrava para a PEA – população economicamente ativa – você começava a ler jornal. Hoje o cara tem mil canais para se informar, sem contar essa mídia social, que essa aí então é migalha de informação e ele já se satisfaz. Ele tem o grupo dele no Facebook e acha que sabe tudo. Então, o que é que o jornal tem de fazer? Ele tem de se reinventar?
Não tem?
O.P. – É pessoal isso: eu acho que jornais impressos não têm de se reinventar. Porque os jornais de qualidade são os curadores da notícia da internet. A notícia que bomba na internet é a que O Globo está dando, a Folha está dando, o Estadão está dando. Eu administro o meu conteúdo, eu posso escolher o que vou botar na internet e o que vou valorizar no papel, e as redações estão aprendendo isso. Porque é uma dificuldade, a maioria ainda vem do papel, os horários que as redações praticam são os horários do papel, o cara chega depois do meio-dia e a redação aumenta até o final do dia. Internet bomba de manhã. A audiência da internet é altíssima das sete às dez. E as redações não deram essa virada.
Mas a questão é que quando você tem uma informação que começa a ser disseminada, aquilo já vai estar velho para o papel, você teria de ter outra informação, ou outra abordagem, um aprofundamento…
O.P. – Nesse caso do mensalão, por exemplo, a internet está mostrando o dia inteiro, e o jornal tem de sair diferente, tem de consolidar aquilo. O cara que ficou o dia inteiro na internet tem de comprar o jornal no dia seguinte para arrumar a cabeça dele. Cada um dá uma interpretação diferente dessa cobertura. O site desordena a leitura, você pode clicar num link e não volta mais para a matéria que estava lendo. Se o cara quer arrumar a cabeça dele ele tem de comprar o papel, que é quem ordena e hierarquiza a informação.
O jornal não tem de se reinventar, então?
O.P. – Ele não tem que mexer na estrutura dele.
Tem de continuar fazendo o que faz?
O.P. – É. Hoje você tem rádio, televisão, impresso, internet. Na internet você tem o iPad, o Twitter, o Facebook, vai ter mais alguma coisa mais adiante, enfim, todas essas são plataformas a mais para aquele que a gente não chama nem de leitor, chama de consumidor de informação. Hoje, ele pode escolher. Então ele pode escolher a internet sabendo que no dia seguinte vai ter na casa dele um jornal que consolida tudo aquilo ali.
Mas se o jornal reproduz na internet sua edição digital, ainda assim se justificaria o papel? Há um ano nós conversamos sobre isso e você falava no alto custo industrial do impresso.
O.P. – Pois é, o custo industrial do jornal corresponde a 70% das despesas totais dele. Lá atrás chegou-se a achar que seria uma beleza acabar com o papel, reduzir o custo para poder investir em massa cinzenta, em pessoas. Apaga isso também: as pessoas gostam de folhear o jornal, é meio lúdico também. Tem gente que guarda, coleciona, deixa a semana inteira… não tem tempo pra ler, mas está ali. No momento, essa tendência está zerada.
Você acha que essa reforma gráfica do Globoera realmente necessária?
O.P. – O jornal está mais bonito. Estava há 17 anos com a mesma cara.
Eu achei que ficou muito parecido com o Estadão…
O.P. – Hoje, com a internet, todos os jornais se parecem.
E essa novidade da “foto viva”? Qual é a ideia?
O.P. – Isso é uma experiência que nós estamos fazendo. Antigamente se dizia: que pena que o jornal não é em cores. Aí passou a ter cor. Que pena que o jornal não tem vídeo. Agora tem, na internet. Que pena que a foto do jornal é estática. Não é mais…
Mas foto é estática por definição. Foto é foto…
O.P. – Você imagina o seguinte, tem um assalto, você consegue lá um vídeo. Bota o vídeo aqui… eu posso botar a foto e o cara vê o vídeo no jornal.
Sim, mas por que ele não faria isso na internet?
O.P. – Mas é meio lúdico, sei lá… o esforço que as empresas de comunicação têm de fazer para acompanhar a tecnologia é muito grande. Você não sabe se vai dar lucro, mas você tem que estar lá. Ainda é ínfimo o percentual de população que tem acesso a essa tecnologia. Lá fora também. iPhone, smartphone aqui ainda é um percentual mínimo, mas lá na frente… Eu tenho uma outra convicção que é a seguinte: o tamanho da internet é esse que está aí. A população mundial que tinha de chegar nela já chegou. O crescimento é vegetativo. No Brasil eu acho que quem tinha de estar na internet já está.
Você acha que não aumenta mais? Com o crescimento da classe C?
O.P. – Mas vai ver celebridade, mundo cão… No que diz respeito a nós, ao nosso universo [de jornais de referência], a internet está no tamanho que tinha de ter. As audiências de sites estão estabilizadas há um ano.
Sobre o funcionamento da redação: agora tem efetivamente uma equipe só para impresso e online?
O.P. – Aqui tem uma equipe só. Começamos em 2007. As duas equipes estavam em prédios separados, o onlineera lá no outro prédio e a redação, aqui. Aí eu fiquei um ano tentando fazer a integração virtual. Em tese é mole, por computador você integra até o Japão… Mas não dá certo. Depois de um ano vimos que tem de botar os dois profissionais para conviverem, senão eles não vão se falar e não tem jeito. Aí fizemos toda uma arquitetura aqui e encaixamos. Não tinha iPad [o “Globo a Mais”, exclusivo para esse suporte], [editoria de] mídia social, e tinha de arrumar lugar para esses caras.
Essa integração física é de 2009, não é?
O.P. – É, vamos fechar o terceiro ano morando junto. Até pouco tempo atrás ainda se falava na turma do site e na turma do jornal, hoje já não se fala mais. Não vou dizer que é já uma coisa consolidada – não é. Essa mágica não deu certo ainda em jornal nenhum do mundo. Nós estamos num período de transição. Isso é opinião apenas pessoal mesmo. Hoje dá para dizer que metade da redação é nativa da internet e a outra metade é nativa do papel. Vai chegar um dia em que a redação será formada apenas por nativos digitais. Aí é que você poderá ter uma noção exata do cara que vai fazer papel, internet, e vice-versa. Hoje o que a gente chama de integração é difícil, primeiro por causa da ferramenta. Hoje você ainda não tem um sistema de computador, de produção eficiente…
…esse que vocês compraram agora…
O.P. –…ainda está sendo desenvolvido – a gente quando comprou sabia disso, que estava sendo desenvolvido. É o News Gate, o mais difundido nos jornais por aí, mas ainda não chegou a uma versão final, uma versão que realmente permita a esse repórter escrever e aquilo ficar disponível em todas as plataformas. Essas ferramentas ainda estão em desenvolvimento. Isso vai facilitar a integração, mas ainda não funciona plenamente, a eficiência ainda não é satisfatória. Quando se tiver essa ferramenta, isso vai deixar de ser problema, o cara sai para fazer uma matéria para O Globo e o editor é que vai ver o que faz com ela, se dá primeiro no Twitter ou guarda.
Mas quem mexe nesse texto é o próprio repórter ou… digo mexer no texto para adaptar à linguagem, porque há uma diferença entre produzir pra internet e para o papel.
O.P. – Essa ferramenta que nós compramos vai ter uma versão lá na frente em que ela vai fazer isso automaticamente: o tamanho para Twitter é esse, para Facebook é outro, e aí o editor é que define. Ainda não existe essa versatilidade, mas daqui a um ano essa ferramenta vai estar fazendo isso tudo. Aí você ainda terá aqueles dinossauros nativos do papel… dá para dizer hoje que na redação do Globo todos os nativos do papel já estão embarcados no digital. Embarcados culturalmente. Os hábitos é que ainda não, que a gente, como todos os jornais do país, ainda trabalha no horário do papel, como falei há pouco.
Mas são as mesmas atribuições? Quer dizer, o cara que era do online produz como o cara do papel e vice-versa?
O.P. – Mesma coisa. E isso é lento mesmo, você pega um cara que cresceu no papel, ele devagarinho vai percebendo e às vezes faz belas coisas para o site, faz vídeos; é o tempo de cada um. De repente chega repórter aqui que diz: eu quero fazer só vídeo. Então tá bom, vai fazer só vídeo. Mas teu vídeo não dá uma matéria? Então tenta fazer uma materinha para o papel.
O repórter pode chegar e dizer que só quer fazer vídeo?
O.P. – Já tivemos casos assim. São repórteres de vídeo. É incrível isso, né?
Mas como assim? Você tem repórter e fotógrafo…
O.P. – Mas o site tem vídeo.
Eu sei que tem vídeo, mas a partir da produção de alguma matéria…
O.P. – Você não tem ainda esse cara que faz um puta texto, uma puta matéria para o site, um puta vídeo, uma puta foto. Não tem esse cara ainda…
Não sei se vai ter um dia, não é? Você acha que vai ter?
O.P. – Pode ser. Os melhores vídeos nossos são feitos por fotógrafos. Fotógrafos que aprenderam a fazer vídeo. E tem repórter que faz texto e faz vídeo de forma bem aceitável. Saem com celular, têm até câmera se quiserem.
Mas você, que tem essa experiência toda de repórter, não é diferente você chegar e apurar uma matéria, às vezes mais complicada, que exija mais tempo, e ao mesmo tempo ter essa responsabilidade de filmar? Isso não é dispersivo?
O.P. – É uma cabeça diferente. Eu não seria capaz de fazer isso, mas lá no futuro… Quando você começou, quando eu comecei, tinha que fazer uma matéria em três vias, uma para o rádio, outra para a agência e outra para o jornal. E eu não tinha que pensar nisso, eu só tinha que botar o papel carbono [nas laudas para a máquina de escrever]. Hoje o cara que mergulha nisso tem de pensar nessa parafernália tecnológica toda, e quanto mais ele se entregar a isso mais sucesso ele vai fazer.
Mas isso não vai prejudicar uma densidade maior?
O.P. – Não sei, não sei, não sei… não dá para dizer, vai depender do talento, da capacidade do cara. Você não tem nenhum modelo ainda. O repórter que manda bem em todas as áreas… o chefe dele ainda é do papel. A gente tem de ter paciência com a transição, é devagar, não dá para ter certeza nenhuma hoje. Eu tenho uma certeza hoje – hoje, daqui a um ano não sei: jornal de papel não morre mais.
Nunca mais?
O.P. – Nunca mais não sei…
Nunca mais não é uma expressão que se diga…
O.P. – Pois é. Não morre tão cedo. Se morrer, eu não vou estar aqui para ver, entendeu?
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]