Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os jornais e a malha urbana

Os consultores da Universidade de Navarra, na Espanha, quando aqui estiveram no início dos anos 1990 estranharam que os grandes jornais paulistanos circulassem com uma mesma edição para todos os bairros da cidade. Na verdade, antes de nós, eles já percebiam que o noticiário genuinamente local, aquele que se refere a personagens, endereços ou paisagens que são conhecidos do leitor, teria importância cada vez maior na sustentação da mídia em papel frente às transformações na comunicação, já em curso, causadas pelo surgimento da internet. Percebiam mais: que em malhas urbanas do porte desta, da Grande São Paulo, só os jornais de bairro conseguirão produzir o que pode ser chamado de autêntico noticiário local. Notícias sobre grandes alterações no fluxo do trânsito de Santo Amaro, por exemplo, podem não despertar o menor interesse nos moradores da Lapa, no extremo oposto da cidade, e vice-versa.

Jornais brasileiros em circulação em cidades com mais de um milhão de habitantes mantiveram-se distantes dos aconselhamentos de Navarra – no sentido de produzirem edições diferenciadas para cada bairro – e conduziram a cobertura dos eventos da cidade na base da metralhadora giratória, ou seja, com a manutenção de uma pauta que atira para todos os lados e acerta o alvo só de vez em quando. Para compensar a impropriedade de um noticiário local que nunca foi legítimo, todos tinham uma boa cobertura de Brasil. Os quatro grandes jornais brasileiros – Estado de S.Paulo, O Globo, Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil (que então circulava uma versão impressa) – tinham estruturas próprias de captação de informações na maioria das capitais brasileiras, o que lhes permitia abastecerem-se de notícias nacionais de qualidade e ainda estruturar boas agências, que reproduziam tal noticiário para todas as mídias regionais.

Sem cobertura nacional

Durante muito tempo, o grande beneficiário desse sistema foi o leitor de jornais impressos: tinha a seu dispor jornais regionais com uma boa cobertura de país. Aquele jornal que não tinha estrutura própria de porte nacional se abastecia nas agências de notícias dos grandes jornais brasileiros.

O cenário começou a mudar justamente no início dos anos 1990, quando, por assim dizer, as oportunidades e ameaças oferecidas pelas novas tecnologias de informação se alargavam e se intensificavam. Boa parte da mídia impressa entrou em crise na tentativa de tirar proveito de oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias e começou a decepar suas estruturas de cobertura nacional. Só o Estado de S. Paulo, na metade dos anos 1990, decepou numa só penada seis sucursais estaduais e quase todos os seus correspondentes nacionais.

A grande mídia impressa foi aos poucos concentrando sua cobertura no eixo SP-RJ-Brasília. Já não é mais nacional. A redução se refletiu de modo também dramático no noticiário das agências de notícias, o que reverberou sobre mais de 200 jornais diários do país, clientes dessas agências e que ficaram sem cobertura nacional.

Previsão pertinente

O desinvestimento em informação prossegue, causado pela segunda onda da crise que veio no bojo das novas tecnologias. Intensifica-se agora a migração da publicidade do papel para a internet, meio revigorado com a digitalização. Mesmo a cobertura do triângulo Rio-SP-Brasília começa a ficar anêmica, raquítica. Há impressos que hoje não fazem mais do que repetir sinais de governo e das demais instituições da República. Não conseguem fugir de uma pauta comum que os torna incrivelmente redundantes. Perderam o apreço pela reportagem e pela exclusividade da informação. “Não me dão dinheiro nem para viajar a Bragança Paulista”, queixa-se um dos repórteres de um grande jornal paulistano.

O cenário é, portanto, complicadíssimo. Os jornais, que precisam recuperar a parte da receita que se evadiu do papel com a venda de conteúdos nos meios digitais, dispõem na verdade de conteúdos de pouco valor agregado: um noticiário local que está longe de ser noticiário local; uma cobertura de Brasil cada vez mais deficiente e uma cobertura de SP-RJ-Brasília enfraquecida pela falta de investimento na qualidade da informação. E ainda há quem diga que a grande missão dos impressos é consolidar com 24 horas de atraso o noticiário já veiculado pela internet e pela televisão. A falta de entendimento do tamanho do problema é o maior problema.

Na entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo (9/7, A12), David Carr, o colunista de mídia do New York Times, previu o futuro para o seu jornal “…uma variedade de negócios com a marca The New York Times. Parte será vídeo, parte será social e haverá um monte de pequenas empresas sob esta outra”. A previsão parece muito pertinente e adequada como exemplo de caminho a ser seguido pelos impressos não segmentados no Brasil.

Mudança e oportunidade

Bastaria que contemplassem o óbvio. Os conteúdos locais são importantes para sustentação do meio papel? É evidente que sim. Então, que tal produzi-los com qualidade? Grandes jornais, de porte metropolitano, poderiam ser atomizados e transformados em jornais menores, de bairro. Também é óbvia a necessidade de voltarem a produzir um bom noticiário nacional, mas este, agora, pode ser mais objetivo e criterioso: cobertura e monitoramento dos mercados, com força suficiente para fortalecer os jornais de interesse geral para a segmentação em economia e negócios. Quem não tem cachorro, caça com gato. Se faltam recursos, que tal investirem os recursos existentes em novas prioridades?

Os eixos do desenvolvimento brasileiro são outros. O Norte, Nordeste e Centro-Oeste crescem mais que o Sudeste e o Sul. As cidades de porte médio se desenvolvem mais que as grandes. O interior paulista consome mais que a capital. Essas mudanças são ricas em oportunidades e é natural que leitores e internautas tenham grande curiosidade em conhecê-las e, se possível, monitorá-las. Continuar de costas viradas para esse novo Brasil é como ficar de costas viradas para o leitor. Insistir nos antigos posicionamentos é como correr alegremente em direção ao abismo.

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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil e atual consultor em comunicação corporativa]