É famosa a frase de Winston Churchill de que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais. Ou seja, não há nada melhor, mesmo quando se reconhecem todos os seus defeitos. Jornalismo é um pouco assim: imperfeito, mas insubstituível. No Brasil essa comparação é ainda mais verdadeira se levarmos em conta os avanços da nossa jovem democracia, nascida a partir da Constituição de 1988, e do bom jornalismo que fazemos, com tantos serviços prestados à sociedade nesse período. Jornalismo, assim como democracia, é uma obra em progresso, em permanente processo de autocrítica e busca de aperfeiçoamento.
Essas reflexões vêm a propósito do modelo de autorregulamentação posto em prática pelos 154 jornais que integram a Associação Nacional de Jornais (ANJ), a mais representativa entidade do setor, com títulos cuja circulação diária soma cerca de 90% do total da circulação brasileira. Há pouco mais de um ano, a ANJ criou o seu Programa Permanente de Autorregulamentação, com o objetivo de estimular os jornais associados a adotarem práticas de relacionamento transparente com suas audiências, de modo a que possam assumir publicamente seus princípios éticos, ser criticados, cobrados por eventuais erros e fazer as correções cabíveis.
O programa recomendou que os jornais associados adotassem pelo menos uma prática no sentido de permitir aos leitores acessar, demandar e obter respostas dos responsáveis editoriais. Pesquisa feita pela ANJ indica que, em função da iniciativa, hoje absolutamente todos os jornais associados já têm algum tipo de canal de relacionamento com suas audiências. A internet, como era esperado, tem facilitado essa prática de transparência.
Códigos de ética e autorregulamentação
Claro que o ideal é que os jornais não se limitem a ter um canal de relacionamento pela internet com seus leitores e possam ir além, formando um conjunto de práticas que tornem mais e mais consequente a relação de confiança que devem ter com seu público leitor. Mas esse é um processo necessariamente cumulativo, que demanda tempo, até pela grande diversidade dos jornais brasileiros.
A incompreensão a respeito dessa realidade leva a críticas como a recentemente feita, no Estadão, pelo articulista Eugênio Bucci, para quem a pesquisa da ANJ revela “números que desencorajam qualquer leitura otimista” (“Pluralismo de fachada”, 6/9). É a velha história do copo meio cheio, meio vazio. A verdade é que o copo já esteve mais vazio e vem sendo enchido exatamente pela iniciativa da ANJ.
O programa da ANJ busca justamente a disseminação das melhores práticas, o estímulo à formação de uma cultura de ética e de autocrítica, num gradativo círculo virtuoso. Por isso o programa é chamado de permanente, ou seja, está em constante evolução. A ANJ remeteu a todos os seus associados exemplos dessas melhores práticas, que vão desde procedimentos habituais de reconhecimento de erros e correção até fóruns de análise crítica. Nesse período de um ano, diversos jornais de pequeno e de médio portes seguiram o caminho dos maiores e passaram a adotar práticas que não adotavam, como códigos próprios de ética e autorregulamentação, conselhos editoriais e conselhos de leitores.
Relacionamento transparente
A ANJ considera esse o melhor caminho para o exercício do jornalismo independente, responsável e de qualidade, que cumpra da melhor forma sua nobre missão de informar e formar os cidadãos. O que se busca é incentivar os jornais a terem seus próprios caminhos de autorregulamentação. Afinal, a credibilidade é o maior patrimônio de um jornal e deve ser cultivada a cada dia – hoje, com a internet, a cada momento.
Quando o Supremo Tribunal Federal, em 2009, tomou a histórica decisão de sepultar a Lei de Imprensa criada no regime militar, definiu também que não cabe nenhum pressuposto para o exercício da liberdade de expressão. A ANJ, como todos os setores verdadeiramente democráticos do País, comemorou a decisão. Mas entendeu – até para valorizar esse bem maior que é a liberdade – que deveria estimular seus jornais associados a adotarem o maior número possível de práticas de relacionamento com suas audiências, com seriedade e profundidade.
Esse modelo descentralizado de autorregulamentação escolhido pela ANJ difere daquele em que um conselho funciona como espécie de tribunal de ética, com a prerrogativa de julgar ações contra os jornais e definir penalidades. Para a ANJ, mais importante do que tudo, sob o ponto de vista da sociedade brasileira, é que no grande universo de jornais brasileiros, de todos os tamanhos e perfis, cresça e se consolide uma cultura de relacionamento transparente e permanente com os leitores.
Jornalismo ético e aberto
Conselhos de autorregulamentação no jornalismo não são necessariamente o melhor caminho. Basta ver o que ocorreu com a Press Complaints Commission, da Grã-Bretanha, considerada um modelo exemplar, mas que foi incapaz de agir no escandaloso caso do News of the World, tabloide popular de Rupert Murdoch que se tornou uma central de grampeamento e manipulação de informações. Foi a própria imprensa britânica que se encarregou de desmascarar os crimes cometidos pelo jornal, que acabou fechado. Ainda como decorrência do episódio, a Press Complaints Commission está sendo completamente reformulada. A liberdade de imprensa funcionou a favor da imprensa e de toda sociedade.
Jornais e jornalistas erram e continuarão a errar. Quando agem de má-fé, a legislação comum de danos morais, que se aplica a todos os cidadãos, é o instrumento democrático e constitucional para puni-los. Mas, além do aparato legal, é preciso que os próprios jornais e jornalistas pratiquem um esforço permanente por um jornalismo cada vez mais ético e aberto à sociedade. A ANJ escolheu esse caminho de evolução, em sintonia com a evolução da própria democracia que estamos construindo.
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[Ricardo Pedreira é jornalista e diretor-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ)]