Não é segredo pra ninguém que nossa dita grande imprensa vive há muito tempo numa bolha: o “jornalismo de aquário”, como se costuma dizer no jargão das redações. Pratica-se, regra geral, um jornalismo desconectado dos fatos, em que interessa mais construir uma versão do interesse dos donos dos meios de comunicação do que investigar a verdade. Qualquer que seja ela. Prospera a política do danem-se os fatos se a verdade não bate com os interesses dos conglomerados da mídia. O que se compreende no andar de cima não bate com o andar de baixo, com a realidade cotidiana das ruas, dos becos, das comunidades, enfim. A propósito, o sociólogo Marcos Coimbra, que nos honra com suas lúcidas análises nas páginas de CartaCapital, lançou a seguinte provocação no livro A Mídia nas Eleições de 2006, organizado por Venício de A. Lima para a Editora Fundação Perseu Abramo: “A mídia teve algum papel nas eleições de 2006?” Coimbra prossegue, fuzila, sem dó, a grande (?) mídia e advoga a “quase completa ausência de efeitos diretos da mídia no processo de tomada de decisão da vastíssima maioria da população durante o período eleitoral de 2006”.
Lula e o PT apanharam durante os mais de 30 anos de suas vitoriosas trajetórias. Apanharam e apanham ainda quando estão certos e quando estão errados. Mais certos que errados, tudo indica, a se julgar pela travessia de duas campanhas vitoriosas de Lula e pela eleição de Dilma. O caráter de subestimação é tanto que se perde o senso crítico por completo, beirando as raias do ridículo. Um articulista do Estado de S.Paulo certa vez desfiou argumentos contra a filiação do chanceler Celso Amorim ao PT porque na sua visão não ficava bem um diplomata ter partido. Havia poucos anos que Celso Lafer e o próprio FHC, que foi nosso ministro das Relações Exteriores, eram do PSDB à época em que integravam as fileiras do Itamarati e mais boa parte da cúpula do Itamaraty. Como é pouco provável que o centenário Estadão abrigue em seus quadros um jornalista/articulista mal informado, só resta a tese de subestimação sem limites do nível de informações de seus leitores.
Manchete nunca praticou o jornalismo oco
Antes das eleições, a “mulher de Lula” era um poste. Quando o “poste” ganha a eleição, passa a se mover, articular-se, desgarrar-se e diferenciar-se de Lula. Do alto de sua alquimia tosca e mesquinha, nossa mídia num passe de mágica faz do poste uma presidente que fala, articula-se e manda. É fantástico. Descobriram agora que a presidenta tem músculo político. Ainda que sob a conveniência dos patrões que querem intrigá-la com Lula. Neste mar de interesses mesquinhos enredam-se nas palavras. Norberto Bobbio dizia que “as palavras, ao serem pronunciadas, estão sujeitas a interpretação”. Neste caso, nossa mídia perde-se violentamente de um dia para o outro com o que é escrito. Não é propriamente que “o povo venceu a mídia”, como disse uma faixa estendida por populares após uma das eleições ganha por Lula e pelo PT. Porque em nossas plagas essa tem o costume de estar do lado das elites, da “elite branca”, como bem o disse Cláudio Lembo, então líder do finado PFL paulista. É que o povo sabiamente se desloca para o outro lado e deixa a mídia a ver navios. Ou melhor: afogando-se sozinha em seu mar de contradições.
Sem muitas pretensões, a não ser a de reviver uma partícula das previsões da imprensa escrita em certo período de nossa história, este texto passa o olho em dois casos concretos para demonstrar que vem de longe esse “costume” de estar quase sempre descolada dos interesses do povo: utilizaremos a revista Manchete a partir de uma coluna pra lá de ufanista e oficialesca do jornalista Alexandre Garcia (atual Rede Globo) na edição nº 1.628, de 10 de setembro de 1983, sob o título “Paulo Galileu Maluf”; e a reportagem de capa da revista Veja nº 652, de 4 de março de 1982, em que o sindicalista Luiz Inácio da Silva (Lula ainda não tinha incorporado o apelido ao nome) aparece na capa com carimbo de “Condenado” estampado sobre sua foto.
A Manchete, sejamos justos, uma semanal ilustrada que combinava vastas fotos com textos em muitos casos longos para os padrões atuais, nunca praticou, ao menos de forma linear, o jornalismo oco, cabeça de vento que é feito hoje por Caras,Contigo e assemelhadas. Ou mesmo pela atual Veja, após seu desmanche desembestado de credibilidade. Gente do quilate de Otto Maria Carpeaux, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Ruy Castro, entre outros, assinaram durante muito tempo uma densa coluna intitulada “As Obras Primas Que Poucos Leram”, que redundou agora, em 2005, num livro de literatura do mesmo nome organizado para a Editora Record por Heloísa Seixas. O sociólogo Gilberto Freire também escrevia para a revista. Num dos números há um texto sobre o movimento tenentista, “Os tenentes eram uns meninões”, vaticinava o autor de Casa Grande e Senzala. Era possível ler na revista uma entrevista com o conceituado cientista político francês Raymond Aron, autor do instigante livro O Marxismo de Marx (Editora Artx). O mix das pautas da Manchete incluía ainda colunas de xadrez, talvez uma influência russa da origem de Adolf Bloch, coluna social de futilidades assinada pela brasiliense Consuelo Badra, e reportagens simpáticas ou pretensamente neutras ao regime militar aqui no Brasil ou no Chile, entre outras ditaduras aqui do Cone Sul. Registre-se também que a revista nunca teve aquelas hipócritas tarjas pretas cobrindo os seios das mulheres, muito comum durante algum tempo em certas revistas semanais ou jornais que enxergavam num par de seios algo pornográfico.
“Administrador forte e capaz”
O alinhamento da revista com o regime militar, velado ou não, aparecia nestas reportagens ou em alguns de seus colunistas. O caso verificado aqui da coluna “Alexandre Garcia escreve”, publicada no número 1.628 sob o título “Paulo Galileu Maluf”, é um libelo oco e apaixonado em defesa da candidatura de Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, daqueles que nem a assessoria política do então candidato foi capaz de escrever. Na análise dos candidatos, Garcia sepulta de imediato a candidatura de Tancredo Neves, “simplesmente porque Tancredo não é candidato”, decreta o escriba do regime militar alojado na Manchete. Taxa a aprovação das diretas no Congresso como um casuísmo que pode sair pela culatra porque poderia dar Brizola. Neste tempo, a força de Lula ainda não emergira. Após um rosário de argumentos pró-Maluf, a bola de cristal de Garcia decreta novamente: “Para derrotar Maluf basta um candidato mais competente que ele”, supondo a não existência deste candidato e acreditando em sua profecia de que Tancredo não se arriscaria a entrar no tabuleiro político como candidato.
Tancredo, notável raposa política, acostumado a andar no escuro da floresta política sem cair em seus buracos, não só já entrara como em certo momento do embate já cutucava Maluf dizendo que ele até ali só enfrentara amadores. Apareceu, portanto, para desespero de Garcia, candidato mais competente que Maluf, derrotando-o no tapete conservador da eleição indireta no Congresso Nacional. O “erudito” Garcia avança e nos brinda com essa pérola: “(…) quase não há diferença entre as declarações de Galileu diante da fogueira da inquisição e o Maluf de pijama diante do incêndio em Natal. Oficialmente, nega. No entanto, move-se.”
A capa da Veja em sua edição 652, de 4 de março de 1981, traz Luiz Inácio da Silva com um carimbo de “Condenado” estampado pela editoria da revista. O texto interno, “A amarga conta da greve”, vai na mesma linha do “condenado”, claramente favorável ao regime militar. A matéria vinha sem assinatura. Nesta época, o diretor de redação era José Roberto Guzzo; o diretor adjunto, Elio Gaspari; o redator-chefe, Dirceu Brisola; e a revista tinha entre seus editores Augusto Nunes, Dorrit Harazim, Celso Barata e Silvio Ferraz. Essa penca de jornalistas – creio que todos bem informados – foi capaz de elaborar o “refinado” texto analisado a seguir. Ah, e uma curiosidade que abria as páginas amarelas. A jovem Eliane Cantanhêde se desmancha em elogios aos gestores postos pelo regime militar no Ministério da Educação e Cultura: “(…) se perderam um intelectual dedicado à cultura e à educação (Eduardo Portela), professores, estudantes, artistas e atletas ganharam um administrador forte e capaz (general Rubem Ludwig, nomeado para substituir Portela)”, enfatiza a jovem Cantanhêde na introdução do então entrevistado das páginas amarelas. Ao que tudo indica, o vigor oposicionista de Cantanhêde não funcionava muito bem nos tempos da ditadura. Talvez entendesse ser uma “ditabranda” que não se justificasse fazer uma oposição virulenta similar à que fez ao governo Lula.
“Dom Paulo Arns não entra de jeito nenhum”
“Malogrado o movimento paredista, a greve é reprimida e só acaba com a capitulação do comando sindical que, mais tarde, pagará pelos seus erros na forma da lei”, proclama a bula reacionária da Veja, alinhada com os tanques do regime militar. Sequer a equipe de redação da revista se deu ao trabalho de consultar um advogado de seus quadros para compreender que a legislação trabalhista é que deveria tratar de um movimento grevista. A Veja, portanto, defendia a aplicação da Lei de Segurança Nacional aos líderes do ABC. O texto vai além e subscreve também a ameaça feita pelos militares ao procurador da 2ª auditoria militar, Dácio Araújo, que “ousou” ventilar a possibilidade de que Lula e os demais líderes do ABC fossem enquadrados na Lei de Greve, como recomendaria o bom senso se o Estado de direito fosse pleno. “Que tal se ele entrasse de férias?”, ecoa mais uma vez a revista o brado das casernas, insinuando a substituição do procurador por outro mais alinhado dos que desejavam punir os sindicalistas com base na draconiana Lei de Segurança Nacional.
O desfile de frases e (pré)conceitos contra a greve e seus líderes povoa todo o texto. A revista encampa a tese do regime de que a prisão de Lula “não é um solavanco institucional, mas apenas uma prova de que a abertura não é uma aventura”. No resto do mundo não prevaleceu esse entendimento conservador e mesquinho. Como na maioria dos países o direito de greve já era amplamente consagrado, a cadeia para Lula e seus colegas deixou em maus lençóis o regime militar perante a opinião pública mundial. Aliás, a revista esbraveja contra as lideranças internacionais que se mobilizaram contra a prisão dos sindicalistas do ABC. “Turista é turista e não pode fazer declarações políticas”, ameaçam os chefes militares, tratando de proibir a entrada simplesmente de dom Paulo Evaristo Arns ao palco do julgamento. “Se aparecer alguém ilustre, examinaremos caso a caso. Dom Paulo Evaristo Arns não entra de jeito nenhum”, diz um oficial do II Exército. A revista naturaliza a prisão de Lula e dos demais líderes ao falar da preparação das celas para os mesmos ou quando levanta a possibilidade de que se a prisão dos sindicalistas não esperasse o dia amanhecer, poderia o Exército ir buscar Lula ainda na noite da decretação de sua prisão. Em nenhum momento a revista lembrou a seus leitores que não estavam tratando com uma quadrilha de assaltantes, mas de sindicalistas que resolveram entrar em greve por questões salariais. Massivamente apoiados por sua base, diga-se.
O metalúrgico do pé rapado
Se a matéria de capa não é assinada, a curta “Carta ao Leitor” tratando da greve o é, por José Roberto Guzzo. Em poucas palavras, Guzzo consegue a proeza de bater a quantidade de equívocos e bobagens, para sermos suaves a essa altura, presentes no miolo da matéria. É um foguetório de impropérios somente explicado pelo nível de vassalagem da revista prestado aos militares. “Continua a fazer água o novo sindicalismo, o novo sindicalismo, supõe-se, deveria ser algo útil para os trabalhadores, o novo sindicalismo tem bem pouco de novo, é a costumeira balbúrdia de grupelhos extremistas, de clérigos de esquerda, políticos oportunistas e teóricos diversos tentando cada qual a seu modo influir e mandar no movimento sindical.” Brilhante, gênio de análise da cúpula da revista.
A essa altura, outras revistas mais isentas já tinham deixado Veja para trás. Mino Carta, no comando daIstoÉ, “sopra” no ouvido de Ricardo Kotscho: “Tem um rapaz interessante por lá, ainda vai dar o que falar. Se manda pra lá.” A IstoÉ acaba sendo a primeira revista semanal a publicar Lula na capa, ainda sem sua barba como marca registrada, numa foto de Hélio Campos Melo. E o novo sindicalismo, sem as aspas do sr. Guzzo, pariu o PT, um dos mais importantes partidos políticos do mundo. E seu líder com “futuro nublado”, ainda segundo a carta do “profeta” Guzzo, chegou à presidência, de onde saiu com índices estratosféricos de aprovação popular após dois mandatos consecutivos, além de ser alçado à condição de um dos principais líderes políticos globais. Tempos depois, Mino diz na introdução de uma entrevista com Lula já presidente em Carta Capital, que nem se Phalas de Ateneia soprasse em seus ouvidos que seu amigo de 30 anos atrás chegaria aonde chegou ele acreditaria. A equipe da então brava IstoÉ não repetia Veja nas sandices acerca do metalúrgico do pé rapado e dedo cortado que se tornou o mais admirado presidente do Brasil de todos os tempos.
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[Nilton José Dantas Wanderley é bacharel em Ciências Sociais com pós-graduação em Política, Cultura e Trabalho pela Universidade Federal da Paraíba; filiado ao Partido dos Trabalhadores desde 1982 e também secretário de Educação do município de Maturéia, PB]