De todas as inovações editoriais e gráficas trazidas pelo Jornal da Tarde, já devidamente registradas pela historiografia da imprensa brasileira, uma em particular demonstrava a disposição do vespertino em se diferenciar de outros veículos ao privilegiar pautas de serviço voltadas para o público local. Se a questão da proximidade constitui um critério de noticiabilidade consagrado na definição de acontecimento como fato jornalístico, um conjunto de matérias do JT contribuiu para materializar o ideário clássico de que o jornalismo deve estar umbilicalmente a serviço da coletividade. Em agosto de 1971, o jornal publicava o trabalho “Receita para São Paulo”, reunindo sete cadernos especiais que traçavam um diagnóstico sobre o crescimento desordenado da maior capital brasileira e apontavam soluções para problemas de infraestrutura urbana na capital paulista.
De autoria dos jornalistas José Maria Mayrink e Ricardo Gontijo, “Receita para São Paulo” resultou de uma série de encontros promovidos naquele ano pelo grupo Estado. Durante três meses, especialistas de diferentes áreas reunidos no Seminário sobre Problemas Municipais debateram as principais deficiências nos serviços públicos da cidade, que concentrava na época cerca de seis milhões de habitantes. A partir das questões discutidas no evento, os repórteres complementaram as matérias com reportagens de campo, ouvindo autoridades, especialistas e moradores, com ênfase nas fontes “autorizadas”.
A série abordou dez temas: habitação; saúde; circulação e transporte; serviços públicos; bem-estar social; educação e cultura; escoamento de águas; uso do solo; abastecimento; e máquina administrativa. As reportagens tinham como objetivo fornecer subsídios para que o novo prefeito de São Paulo, o engenheiro Figueiredo Ferraz, pudesse adotar medidas para a resolução dos problemas em curto, médio e longo prazo. De fato, algumas das propostas apresentadas em “Receita para São Paulo” tornaram-se políticas públicas. A criação do Código de Endereçamento Postal (CEP) foi uma das sugestões acolhidas pela administração municipal bem como a integração dos meios de transporte. Após a publicação das matérias, foi aprovada ainda uma nova lei de zoneamento na cidade.
Um momento de ribalta
A série mantinha a ousadia e a inovação do projeto gráfico do jornal. A valorização dos “clarões” (espaços em branco na página) tornava a diagramação dinâmica e arejada. Os títulos – criativos, sem verbos de ação e de diferentes tamanhos e formatos – fugiam também dos padrões da imprensa tradicional. Em “Receita para São Paulo”, o JT utilizou ainda o recurso gráfico de “sangrar” as fotos, invadindo as margens da página. Outras eram recortadas. O jornal estampava uma ilustração para identificar a série. A figura, que não ocupava espaços fixos, trazia um sol nascendo “sorridente” entre os arranha-céus da metrópole, sugerindo o surgimento de um novo momento para a cidade.
Para a comissão julgadora do Prêmio Esso de Jornalismo, o trabalho de José Maria Mayrink e Ricardo Gontijo teve valor de documento histórico. O jornalista Luiz Orlando Carneiro, integrante do júri naquele ano, justificou a escolha, na edição comemorativa dos 25 anos do concurso, informando que as matérias cumpriram o “dever da imprensa de trabalhar para e com a comunidade” (1980: 99). No artigo, Carneiro defendia o jornalismo como instrumento de utilidade pública, agindo permanentemente em defesa do cidadão:
“Os grandes jornais sentem cada vez mais a obrigação de intervir na condução dos negócios públicos, não apenas exercendo o papel de ombudsman atento e, quando necessário, de crítico inclemente, mas contribuindo competentemente para equacionar e ajudar a resolver problemas imediatos e mediatos. ‘Receita para São Paulo’ (…) é um excelente exemplo desse tipo de jornalismo sério e consequente” (1980: 98).
Dentro desse ideário, o repórter ocupa posição privilegiada como interlocutor que interfere no plano político em prol das reivindicações da sua comunidade. Torna-se aliado dos moradores exigindo das autoridades o cumprimento de projetos que promovam o bem-estar coletivo. A iniciativa rendeu ao jornal o Prêmio Esso de Jornalismo de 1971 na categoria principal, um momento de ribalta na breve história de 46 anos do JT, interrompida no último dia 31 de outubro com a circulação da sua última edição.
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[Marcio de Souza Castilho é jornalista e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)]