Uma opinião pessoal, como não poderia ser diferente, mas que acho que tem muito em comum com a experiência de todos nossos leitores. De um momento a outro, os estudiosos do Direito penal nos tornamos voz importante para explicar o que parte da imprensa – a boa imprensa – já apostava ser um divisor de águas. Pessoalmente, eu duvidava bastante do encaminhamento técnico do veredicto, apesar de haver conhecido com alguma intimidade o sério trabalho do Supremo Tribunal Federal. Mas ao fim dessa experiência de diária análise do julgamento do século, idealizada pela equipe do Valor e por um brilhante penalista, quem capitaneou nosso conjunto de professores respeitando opiniões e divergências, as lições que aprendi foram para além de confirmar a utilidade de crer nas previsões dos mais sábios. De um modo tão pontual como cabalístico, outros seis ensinamentos ficaram bem claros. Para mim, digo.
Aprender que os caminhos da economia e da justiça coincidem foi o primeiro ponto. Em um plano bem geral, a AP 470 mostrou-se idêntica aos índices de desenvolvimento econômico do país, que há pouco foram divulgados: as distâncias sociais diminuíram, o que é excelente para toda a sociedade. O tablado do Supremo foi espelho disso, porque vimos cidadãos do alto poder sendo tratados quase como réus comuns. Não significa que haja deixado de existir uma justiça de ricos e outra de pobres (que em geral não acodem à Suprema Corte), mas que ao menos as grandes imunidades pereceram, até mesmo para provar-se do amargo sabor da injustiça, que não se deseja sequer ao pior criminoso. Pobre ou rico.
Também ficou comprovado que traduzir o blindado discurso jurídico não é algo impossível, e parte da imprensa o fez muito bem. Se qualquer simplificação parecerá ao cientista sempre herética, há no fenômeno dois aspectos que temos de aceitar: primeiro, que o direito somente se concretiza quando os cidadãos o legitimam, e para legitimar é necessário compreender; depois, e talvez mais relevante, que os olhos da opinião pública conseguem ver o que a técnica não alcança. Que existem nos julgamentos interesses, e contatos, e palavras, e mensagens subliminares que o cientista não nota ou finge não notar apenas porque não consegue inserir tantas variáveis em sua exata equação. O direito é um corte da sociedade, mas analisar o fenômeno na integralidade é louvável tarefa, dentre outros, do jornalista.
Reflexão necessária
Em sentido bem contrário, exagera-se ao observar o julgamento como um fenômeno político-partidário. A lição então é de que ainda há um longo caminho para se consolidarem socialmente os conceitos institucionais, dentre os quais está a independência do Judiciário. Não houve dia que, publicando-se um mediano artigo de minha autoria, deixasse eu de receber algumas mensagens de leitores que transformavam minhas palavras em uma borbulhante exaltação de PT ou PSDB, de Lula ou Fernando Henrique, como se o plenário fosse um campo de disputa de dois times de futebol pelos quais se nutrem paixões das mais cegas e guturais.
Para mim foi de fato uma nova experiência receber críticas passionais de alguns personagens que eu acreditava serem o baluarte da frieza e imparcialidade de análise. Curioso, porque não consigo prever se nosso futuro nos reserva melhor compreensão técnica ou o recrudescimento desses ardores.
Foi também um tanto decepcionante confirmar o que há tempos defendia, sem grande aprofundamento técnico: que todos nós pensamos narrativamente. Fez-se inviável acompanhar o julgamento sem criar uma figura de um ministro herói e outro antagonista. Falsa polarização, em especial se for aceita minha observação de que, se não houvesse nas sessões uma aguda divergência de opiniões, aí sim teríamos um real motivo para suspeitar do comportamento da Corte. A divisão ilusória entre mocinhos e bandidos jamais permitirá uma boa apreciação fática, e estão de parabéns os meios de informação que ao menos tentaram dissolver esse sintomático mito de lobo mau, que meu desconhecimento de psicologia social impede analisar.
Dessa mesma lógica narrativa, fica também o aprendizado de que falta muito para o país tomar consciência de que necessita repensar a si próprio. Predicativos, lançados em alguns noticiários, como "a novela do mensalão" demonstraram o total desprezo para com o momento histórico. Acreditar que já se comentou demais sobre o julgamento denota total rejeição à atividade de reflexão sobre nossos rumos, pois qualquer sociedade minimamente desenvolvida teria a certeza de que a Ação Penal 470 foi um fato sobre o qual ainda restam milhões de linhas a serem escritas, no decorrer das próximas décadas.
Notícia de ontem
A última lição reverte à primeira, mas em outra face. Escrever com regularidade a um jornal diário de ampla repercussão fez notar o quanto é árido o cotidiano dos jornalistas, esses que nós juristas amamos criticar. Construir com velocidade um texto curto e preciso, com a responsabilidade de desnudar-se para um público atento, que nota com facilidade erros lógicos e preconceitos que o próprio autor ignora é uma responsabilidade e tanto. Um risco, melhor dito.
Depois de todo o esforço, ver seu texto desatualizar-se e perder sentido em questão de horas, como um pão amanhecido, tampouco é a melhor das experiências. E só mais uma lição de respeito que a vida nos dá diariamente, a que todos já deveríamos estar habituados. Mas não estamos.
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[Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de direito penal da Universidade de São Paulo (FDRP/USP) e membro da União Brasileira de Escritores]