Outro dia assisti a um debate sobre a ética nos meios de comunicação de massa. E entre mil e tantas teorias, nada ouvi sobre o loteamento que se faz nas páginas dos jornais. Em tempo de eleições, principalmente, cada candidato negocia colunas e páginas, paga com dinheiro de inconfessáveis procedências e, se vitorioso nas urnas, compromete o mandato no balcão das maracutaias. Hoje é assim, ontem foi pior. Os barões da mídia jogam as fichas e ousam pirotecnias ideológicas. Liberdade é o mote, mas o sofisma é flagrante. Desejam liberdade para a empresa e não para a imprensa.
Quem pesquisa sempre lamenta a parca literatura sobre nossa história. Não é o caso, creio, quando se trata da imprensa. Há vários e interessantes livros sobre o tema, alguns dissecando a trajetória dos principais jornais. E como a imprensa tupiniquim só tem dois séculos de vivência, sobre boa parte desse tempo ainda se pode aprender com o testemunho de quem rascunhou as pelejas do nosso povo.
Debate que se repete é sobre cada fato e suas versões. Até onde a ênfase editorial compromete a verdade? O sensacionalismo agride, a espetacularização compromete a ética? Ou será que a mercantilização da notícia é recurso válido? O dilema é antigo, é de outro tempo.
Esse era o tempo de O Cruzeiro, não do clube azulado, nem do dinheiro corroído pela inflação, chamada de carestia naquele tempo, mas da revista que era tão importante que os antigos ainda dizem dela: O Cruzeiro foi o que hoje é a Rede Globo de Televisão. Em prestígio e monopólio da informação, sim, mas com as ressalvas que o tempo e as especificidades da televisão impõem. O que a revista publicava era “verdade” e, mesmo que não fosse, passava a ser, pois nada nem ninguém havia que a contestasse. O poder de convencimento, claro, era bem menor, pois nada se compara à imagem e ao som da televisão, que nem exige que o telespectador seja alfabetizado.
Sucesso de vendas
Nas décadas de 1940 a 60, a revista reinava soberana, mas com sérias limitações em seus domínios, pois nem todos sabiam ler e a distribuição se limitava aos grandes centros, chegando com muito atraso às cidades menores. Nem é preciso perder mais tempo falando do hoje e do ontem, da Globo e de O Cruzeiro, mas ninguém pode negar que a revista de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, o Chatô que foi rei do Brasil (e esse é o nome do livro de Fernando Morais sobre o baixinho endiabrado), foi pioneira na espetacularização da notícia, indo muito além do estardalhaço televisivo que hoje fazem todas as redes nacionais.
Em nome da notícia, que é mais um show do que um instantâneo da realidade, repórteres e câmeras manipulam, distorcem, nos fazem ver o que eles querem que vejamos e não o que de fato está acontecendo. Em manifestações de rua, então, é uma festa. Está todo mundo quietinho, mas quando percebem que estão no ar, gritam, esperneiam, acenam, fazem poses e fica claro que tudo fora combinado. Até aí, tudo bem, pois a encenação, por mais grotesca que seja, não vai além disso. Difícil é suportar a manipulação, a mentira empacotada para ser vendida como verdade. E nisso as televisões de hoje têm muito da antiga revista O Cruzeiro, onde brilhava a estrela de David Nasser, o farsante dos fatos, o falsificador de fotos.
David Nasser não era repórter, um investigador em busca da verdade; era apenas um manipulador de emoções, um aventureiro que ficou rico e famoso usando o poder da palavra impressa como gazua, a exemplo do que fazia o patrão Chatô com os políticos e poderosos. David Nasser poderia ser comparado com aquele repórter decadente e inescrupuloso que explora a tragédia de um mineiro soterrado no clássico do cinema sobre a imprensa marrom. No filme A Montanha dos Sete Abutres, Kirk Douglas era o repórter que impedia o resgate e prolongava o sofrimento da vítima soterrada enquanto faturava mais algumas horas de estrelismo, ele que se tornara repórter exclusivo da tragédia alheia.
A revista O Cruzeiro, ponta-de-lança do império associado, lidava com o imaginário popular, como o faz hoje a televisão nas novelas, nos shows, nos programas que misturam tudo e, lamentavelmente, até nos telejornais. Não havia compromisso com a verdade, apenas com a verossimilhança, que era o pretexto usado por David Nasser para mentir descaradamente.
Já li alguma coisa sobre ele e pessoas que o conheceram revelaram que David Nasser não reportava fatos, mas contava aventuras com sangue, suor e lágrimas (das vítimas, não dele, que fique claro). O antigo leitor de O Cruzeiro deve se lembrar que o assassínio de Aída Cury, o crime do Sacopã e os sobrevoos fictícios sobre aldeias indígenas não passaram de ponto de partida para o que realmente interessava: excitar a imaginação do leitor, levando-o para um mundo de fantasia a partir da realidade.
Foi assim que O Cruzeiro se transformou em enorme sucesso de vendas – a tiragem superava 700 mil exemplares em um Brasil com pouco mais de 40 milhões de habitantes, grande parte analfabeta – e, pelos mesmos motivos, a baixaria que a televisão joga diariamente nos lares lidera as pesquisas de audiência.
Donos da verdade
O sucesso de hoje é temperado com os mesmos ingredientes dos anos 1940 a 60, mas os efeitos colaterais são muito mais perniciosos. A sociedade sofre os efeitos da falta de escolas e excesso de distorções.
Uma consequência: a meninada de hoje não vê nenhuma graça nas travessuras de ontem. Antes os moleques tocavam campainhas de portas alheias e colavam chicletes nas cadeiras dos cinemas; os “anjinhos” de hoje agridem professores, desrespeitam os pais, violentam as regras básicas de convivência e aprenderam a rechear balas e bombons com veneno para ofertar aos rivais nos intervalos das aulas. Isso quando vão à escola e não preferem se drogar nas esquinas da vida. A impunidade campeia, não há limites para os donos da verdade e nem para a juventude ávida de emoções. Enquanto isso, a imprensa nem se lembra de sua função social.
Alguém ainda quer falar na ética dos meios de comunicação de massa?
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[Hermínio Prates é jornalista e escritor]