Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Aos acusados, o ônus da prova…

Motivado pela publicação de duas reportagens na Folha de S. Paulo, contestadas pelas fontes e igualmente pela ombudsman Suzana Singer, pensava em discutir sobre a distância que pode separar o trabalho da reportagem e a edição, em sua forma final (títulos, olhos, legendas, linhas finas e outros elementos gráficos e visuais), na mídia impressa.

Contudo, confesso que fui atropelado por outra matéria publicada no diário paulista e mudei o rumo da prosa. A reportagem, intitulada “Relação com Lula explica influência de ex-assessora” é um primor do que se poderia chamar de irresponsabilidade social da mídia. Num texto de exatos 4.169 caracteres (com espaços), o autoconsiderado “maior jornal impresso do país” ignora o princípio democrático da presunção da inocência e publica uma página (com chamada de capa – “Poder de assessora vem de relação íntima com Lula”, edição de 1/12/12) digna das melhores revistas de fofocas. Faltam rigor, fundamento, provas da tal “relação”, enfim um exemplo de mau jornalismo.

O texto (editoria Poder, p. A5) evidencia ter passado por rigorosa revisão. Juridicamente prevenido, em nenhum momento qualifica de “amorosa” a suposta relação íntima do ex-presidente Lula com Rosemary Noronha (ex-funcionária do escritório da Presidência da República, em São Paulo e pivô da “Operação Porto Seguro”). Contudo, insinua do lide à última linha que essa pode ter sido a fonte do suposto poder da assessora:

A influência exercida pela ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, no governo federal, revelada em e-mails interceptados pela operação Porto Seguro, decorre da longa relação de intimidade que ela manteve com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Rose e Lula conheceram-se em 1993. Egressa do sindicato dos bancários, ela se aproximou do petista como uma simples fã. O relacionamento dos dois começou ali, a um ano da corrida presidencial de 1994” (íntegra aqui) [grifos meus].

A reportagem não explica, tampouco informa que tipo de relacionamento Lula e sua ex-assessora mantinham, desde 1993. Deixa sempre nas entrelinhas a suspeita, no jogo sórdido de um texto editado com lupa. Nem sua atual companheira é poupada: “Marisa Letícia, a mulher do ex-presidente, jamais escondeu que não gostava da assessora do marido” (cit.). A exposição política da vida íntima se justificaria, como previsto nos bons manuais de Jornalismo, se fosse elo efetivo de um assunto relevante, de inconteste interesse público. Não parece ser o caso. Apenas as revistas Veja e Época, que misturam jornalismo com publicismo com viés nitidamente reacionário, compraram a ideia.

Provas consistentes

Aguardei a coluna de Susana Singer, na edição do dia seguinte (domingo, 02/12). Sob o título “Íntimo e pessoal”, a jornalista procura justificar, de todas as formas possíveis, a escolha editorial da Folha. Singer faz uma interpretação inusitada da “reportagem” e revela aquilo que não está escrito, por zelo jurídico ou alguma nesga de pudor jornalístico. Observem a sua leitura da matéria:

Sem usar a palavra ‘amante’, o jornal conta que, nas 23 viagens internacionais em que Rosemary acompanhou Lula, a então primeira-dama Marisa Letícia nunca estava. Segundo a reportagem, havia um esquema especial que permitia o acesso à suíte presidencial nessas escapadas” [grifos meus].

No entanto, a ombudsman que deveria ser a defensora dos direitos dos leitores, vai além. Depois de tentar confundir, com a tese de que “o jornalismo brasileiro costuma preservar a intimidade de seus políticos” (ela esqueceu o “Caso Miriam Cordeiro”, ex-mulher de Lula, nas eleições de 1989 – que o acusou de tê-la pressionado a fazer aborto), Singer enfim apresenta uma saída ao mau jornalismo praticado pela Folha. E escreve, na boa:

Se o ex-presidente tiver incensado Rosemary por causa de um romance, isso teve consequências políticas. (…) Só que o trabalho não terminou. Foi relevante mostrar ao leitor de onde emanava o poder de Rosemary, mas, a partir de agora, detalhes de alcova, por mais tentadores, não interessam. O importante é investigar se o ex-presidente esteve envolvido no suposto esquema criado pela sua então assessora”(íntegra aqui) [grifos meus].

Investigar se o ex-presidente Lula está envolvido num suposto esquema de tráfico de influência e corrupção é de altíssimo interesse público e inconteste relevância. Mas, percebam que há um “SE” na abertura dessa passagem final da coluna de Singer que delata o espírito do jogo antidemocrático do tipo “se colar, colou”. Uma reportagem que acusa um ex-presidente da República de ser partícipe num esquema de corrupção, de quebra atribuindo-lhe um relacionamento amoroso, deveria se cercar de informações, cuidados, provas irrefutáveis – e não se amparar em fontes como “integrantes do corpo diplomático” e “oficiais da Aeronáutica, ouvidos no anonimato” – que não sustentam a história do suposto romance.

Revista de fofocas

Leão Serva (in Jornalismo e desinformação) entende edição como “a organização das informações conforme as regras do meio e do veículo específico e conforme a lógica do grupo incumbido do trabalho de editar, a compreensão que ele tem dos fatos e o que supõe ser o interesse e a capacidade de entendimento de seu receptor”. No caso em tela, parece claríssima a intenção do Grupo Folha de impor um desgaste político adicional a um dos mais populares presidentes da curtíssima história democrática do país.

Por outro lado, o pesquisador Fernando Paulino (UnB), propõe, resgatando um conceito de Claude-Jean Bertrand (Media Accountability Systems ou MARS) “que a atuação do ombudsman possa se constituir como um MARS, estimulando as instituições de comunicação a serem mais rigorosas com a produção e a divulgação da informação” (in Vitrine vidraça, organizado por Rogério Christofoletti). Susana Singer, neste caso, atuou como “advogada” do seu jornal, distanciando-se do leitor e do interesse público.

Enfim, voltando à reportagem do suposto romance entre Lula e sua ex-assessora, nenhuma fonte fundamental confirma a história; nenhum dos envolvidos diretamente foi ouvido (Lula, Maria Letícia, sua esposa, e a própria Rosemary Noronha). Mesmo assim, o jornal publica a matéria, com chamada de capa. O que explica essa decisão? Mau jornalismo pura e simplesmente? Protagonismo político antidemocrático? Leia e tire suas conclusões… Mas adianto: o texto poderia ser publicado, sem cortes, numa edição especial das revistas que se prestam às fofocas sobre a vida de celebridades.

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[Samuel Lima é docente da UnB, professor visitante na UFSC e pesquisador objETHOS]