Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A Nave Errante e o pouso certo

Quem embarcou na Nave Errante, edição especial do Suplemento Literário de Minas Gerais, encontrou a rota perdida do que costumava ser conhecido como jornalismo cultural. Gerado na internet e reproduzido em papel couché, capa colorida e formato tabloide, um pouco maior do que o das primeiras revistas ilustradas O Cruzeiro, Manchete, Senhor, Realidade (alguém se lembra?), o suplemento organizado por Fabrício Marques abre com a entrevista de um jornalista que habita o planeta da cultura há muito esquecida, hoje ocupado por dinossauros com asas. Sergio Augusto enxerga a mídia submetida aos mais rasteiros interesses da indústria cultural e redefine o Brasil como “país de videotas” (ver, neste Observatório, “Precisamos democratizar o elitismo”).

Tem razão. Manipulada por ideólogos da internet, promotersdo entertainment, aduladores de celebridades e guiada por pautas-releases prontos, a mídia focada em cultura embarca no comando de editoras, curadores e produtores aproveitadores da preguiça geral. Eles determinam o dia, hora e espaço em que todas páginas e programas de rádio e TV vão publicar a estreia da peça, do filme, do livro, da exposição. Não perdem uma. Estranho que o leitor ainda não tenha percebido. Ou anda tão desinteressado que tanto faz. E por que o autor entra em crise quando um veículo se antecipa e fura? (Furo: antiga modalidade jornalística que traduz matéria, reportagem, notícia em primeira mão.) Ele teme que os concorrentes se neguem a publicar o assunto… requentado! Pode cair no black hole.No caso dos livros, ficam fora da prateleira da frente das livrarias, não vendem.

Nem é o pior. Com vulgaridade, mau gosto e populismo pegando pesado, dá a impressão de que a ordem, incluindo as editoras de livros, é baixar o nível. Como debater cultura num ambiente que perdeu a medida da realidade, o senso do ridículo? E quanto constrangimento ao assistir nas melhores emissoras de rádio ou TV, em programas destinados à cultura, repórteres que pronunciam francês como javanês, para não falar do português como aramaico? Os comentários doem. Sergio Augusto comenta que Carlinhos Brown, numa entrevista à Playboy, se recusou a reconhecer Mozart como clássico.

Donos da bola

Os cultos, agora elefantes obsolescentes, são jornalistas que já bateram muita máquina de escrever e telex dando o salto meteórico ao fax, internet e jornais digitais para reconhecer, atônitos, que tanta tecnologia não melhorou a qualidade da produção intelectual.

Onde foi parar a redação em que pululavam grandes escritores e jornalistas – hoje, pega mal –, mais velhos do que o resto da meninada? Antonio Callado, Carlos Drummond de Andrade eram figurinhas fáceis do Correio da Manhã ao Jornal do Brasil – aliás, dois jornais defuntos.

Sergio Augusto lastima que nosso jornalismo cultural já tenha sido dos melhores da imprensa e hoje a honrosa exceção vá para o “Caderno 2”, do Estado de S.Paulo, e, como produtores de cultura, o Instituto Moreira Salles. A revista piauí salva um território, aqui e ali um suplemento acerta – como aconteceu com O Globo na edição sobre Rubem Braga, no sábado (12/1). Mas a lista de suplementos literários enterrados dá desespero. Estadão, Folha (“Folhetim”), o dominical do Jornal do Brasil, o da Tribuna da Imprensa editado por Mario Faustino. Proliferam os críticos de cinema na internet, mas Sergio Augusto pergunta: “Cadê a Pauline Kael”? Os documentaristas pipocam, mas criar um documentário como os de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles não é para qualquer bico.

Democratizar, sim, mas a nave do jornalismo entortou a rota e entrou no vácuo ao desprezar a cultura – e a multidão de órfãos foi beber na fonte na TV paga. Sintoniza a BBC, lê revistas mensais como o Magazine Littéraire, o imprescindível El País com o suplemento “Babelia”, The Economist que dá de goleada quando entra na seara da cultura.

Por que os ingleses, os franceses e os espanhóis, todos com a economia no buraco, podem, e nós, que viramos a esperança econômica do mundo, não? O que aconteceu com nossas raízes francesas com a qual a elite fazia biquinho e se vangloriava, e com nossa escola americana de revistas como a The New Yorker? Não se trata de colonialismo cultural, mas de saber raspar o bom de lá para escavar o nosso.

O olhar jornalístico passou por uma simplificação, diz Humberto Werneck no artigo “Santa Sherazade, padroeira dos jornalistas”, no mesmo suplemento. Literatura não é jornalismo e Jornalismo não e Literatura – é como fazer água passar pelo cano de gás, diz Werneck. Mas se pode fazer cultura em jornalismo sem literatices nem entupir de citações e erudição duvidosa como fazem as colunas de notáveis que se aproveitam mais do espaço do que seus leitores. Viva a capacidade de prender a atenção do começo ao fim, viva Sherazade.

De olho nas cifras, os donos da bola decidiram infestar o espaço comfait divers e doses cavalares do que chamam de realidade – na verdade, reality shows –, e tome incêndios, sequestros, assassinatos e as barbaridades se tornaram um país chamado Brasil.

Todos a bordo

Foi em 14 de fevereiro de 1972 que Tom Wolfe disse na revista New York sobre sua sensação de estar fazendo em jornalismo coisas que ninguém havia feito antes – indo além dos limites convencionais do jornalismo, e ficando de quatro dias a uma semana com o entrevistado para extrair emoção facial, gestos reveladores. Gay Talese embarcou, definindo a maior qualidade do jornalista, faça o que fizer com o texto: credibilidade. E Truman Capote com o que chamou de primeiro romance não ficcional, A sangue frio. Faz muito tempo.

E faz mais de meio século que fechou a revista francesa Verve, inaugurada em 1937 com capa de Matisse e foto de “Guernica”, de Picasso, onde James Joyce e Ernest Hemingway eram habitués. Mas o New York Review of Books, que nasceu da greve nova-iorquina de 114 dias entre 1962 e 1963, continua até hoje mantendo a rebelião contra a mediocridade do suplemento dominical do New York Times. E continua firme o Times Literary Supplement (TLS) londrino, que teve Virginia Woolf e T.S. Eliot entre seus colaboradores.

E o Brasil? Salvam-se uma ou duas meias páginas nas revistas semanais de informação, aÉpoca não raro surpreendendo na seção “Mente Aberta” e, na última edição, com o ensaio (pasmem: 7 páginas) “Desaprendendo a nadar” na rubrica “Vida”. Mas os adictos morrem de inveja de uma Der Spiegel, que reserva 15 páginas para sua seção de cultura.

Cultura não é elitismo. Democratizar e abrir espaço para as classes D e C foi imprescindível num país de perversa segregação social e racial como o Brasil, mas quem disse que a classe D e C não gosta de nada além do axé, rasteirices e pagode? Sergio Augusto definiu: houve um pacto faustiano com o Mefistófeles do consumo, numa cultura emasculada pela supremacia mercadológica. A cultura evaporou-se em guetos de consumo.

O que pauta o jornalismo cultural contemporâneo? A resposta vem de Silviano Santiago: a indústria cultural nunca será inteligente, e se o jornalista é mais importante do que a notícia, há algo de podre no reino das comunicações.

Nave Errante não ficou por aí. Saiu uma segunda edição do mesmo suplemento, em capa vermelha. Organizada pelo cronista e biógrafo Humberto Werneck com título A maioridade da crônica no mesmo formato gigante, são 37 páginas assinadas por Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andreade, Machado de Assis, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Antonio Maria, Antonio Cândido, Clarice Lispector…

Minas Gerais dá fôlego, alento e uma chamada para embarcar nessa nave. Se Machado de Assis dizia que palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um governo, uma revolução, um livro… por que não um jornal cultural ou retomar a rota extraviada do jornalismo cultural?

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[Norma Couri é jornalista]