Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

E a ciência básica?

Embora haja similares no mercado – como a Scientific American Brasil e a Pesquisa Fapesp –, a Ciência Hoje segue sendo não apenas a mais antiga, mas também a mais importante revista de divulgação científica publicada no país. A coleção completa é uma das preciosidades da biblioteca aqui de casa: são 299 edições – a edição de janeiro/fevereiro de 2013, que já deve estar saindo do forno, será a de nº 300 –, ocupando duas prateleiras e pesando uns 60 kg (uma saca de milho!), talvez mais.

De todas as revistas de divulgação publicadas no país, a CH é a única que aceita artigos enviados espontaneamente. Quer dizer, qualquer um – estudantes, professores, cientistas etc. – pode submeter um manuscrito para avaliação. Isso não significa dizer, claro, que todo artigo enviado será publicado. Há um processo de avaliação, a exemplo do que se passa nas revistas técnicas, ao longo do qual são recusados muitos artigos. Também não significa dizer que a revista não encomende artigos, pois encomenda – os artigos da seção “Memória”, por exemplo, na qual são comentados alguns feitos científicos notáveis, são previamente encomendados aos seus autores. Há, no entanto, um amplo e diversificado conjunto de seções a serem preenchidas com os artigos que são enviados espontaneamente.

30 anos na estrada

Em julho do ano passado, a CH completou exatos 30 anos de existência. A revista foi oficialmente lançada durante a 34ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada na Unicamp, em Campinas (SP), de 6 a 14/7/1982. Nos primeiros anos, a publicação era bimestral; com o sucesso, porém, o número de edições anuais aumentou – a partir de 1987, esse número passou de seis para 11 (janeiro e fevereiro têm até hoje uma única edição). Na primeira década (julho de 1982 a julho de 1992), foram publicadas 82 edições (nºs 1 a 82); na segunda (agosto de 1992 a julho de 2002), foram 102 (nºs 83 a 184); na terceira (agosto de 2002 a julho de 2012), 110 (nºs 185-294).

Além de mudanças na periodicidade, alguns percalços atrapalharam a regularidade das edições. Pouco antes de completar a primeira década de existência, por exemplo, a CH passou por uma grave crise financeira, correndo o risco de acabar. Em 1991, as edições nºs 70 (janeiro/fevereiro) e 71 (março) foram impressas apenas em preto e branco, ambas trazendo na capa um alerta aos leitores: “AMEAÇADA DE EXTINÇÃO”. O grito de alerta surtiu efeito. Com o tempo, os problemas foram equacionados e o risco de desaparecer, ao que tudo indica, foi afastado. A revista atingiu a maturidade e se converteu em uma referência.

A tiragem da CH, no entanto, nunca decolou para patamares estratosféricos – até onde sei, as maiores tiragens, na casa dos 70-80 mil exemplares/mês, teriam sido alcançadas ainda na década de 1980. Quando publiquei o meu primeiro artigo na revista, no segundo semestre de 1996, a tiragem média mensal estava na casa dos 15-16 mil exemplares. Para dimensionar melhor este número, basta dizer que o lixo que a Abril publica ainda hoje sob o rótulo de Superinteressante tinha, mais ou menos na mesma época, uma tiragem média mensal na casa dos 400 mil exemplares. (A propósito, algum tempo depois, toda a equipe editorial da Superinteressante foi substituída. Os chefões queriam que os novos editores dobrassem a tiragem. Como? Em primeiro lugar, publicando menos ciência – “uma chatice complicada que ninguém entende”. Em segundo lugar, ocupando as páginas da revista com assuntos pretensamente polêmicos ou que estivessem na moda. Por fim, embrulhando tudo com capas apelativas – nus femininos, por exemplo.)

Populismo científico?

Nos últimos anos, a CH (via Instituto Ciência Hoje) ganhou um fôlego extra: apoio financeiro do governo federal. Em troca, o governa ficava com uma fatia da tiragem mensal da revista. Esses exemplares eram então distribuídos para determinadas instituições e pessoas físicas, como os bolsistas de pós-graduação do Ministério da Ciência e Tecnologia – a rigor o nome atual é Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Nesse sentido, podemos dizer que o aporte financeiro veio acompanhado de uma repentina ampliação no universo de leitores.

Não sei se as condições dessa parceria se mantêm, mas acho que a pergunta é apropriada: será que ela de algum modo provocou mudanças duradouras no perfil da CH? Arrisco dizer que sim, lembrando, antes de tudo, que os bolsistas do MCTI abrangem as mais diversas áreas do conhecimento (ciências sociais, filosofia, artes etc., além das áreas tecnológicas), não se restringindo apenas às ciências naturais (física, química, biologia etc.). Uma coisa que tem me chamado a atenção é o leque temático da revista, que publica hoje, muito mais frequentemente do que antes, artigos tratando de questões fora do âmbito estritamente científico. Mais recentemente, inclusive, foi criado um suplemento trimestral, o “sobreCultura”, no qual são abordados apenas temas e assuntos “culturais” – literatura e artes plásticas, por exemplo.

É bom que se diga que a CH nunca restringiu sua pauta aos domínios exclusivos das ciências naturais, publicando desde o início artigos de outras áreas do conhecimento. Do meu ponto de vista, contudo, o problema agora é que a revista abriu demais o leque, passando a sobrevalorizar temas e assuntos não científicos. Como o número de páginas da revista permaneceu inalterado e o espaço ocupado pelos artigos de “interesse geral” (rótulo arbitrário usado aqui para acomodar os artigos de ciências sociais, artes e tecnologia) foi ampliado, houve uma correspondente redução no espaço deixado para os artigos de ciências naturais (básicas ou aplicadas).

Um exemplo dessa aparente inversão de prioridades eu encontrei no último sábado (12/1), quando fiz uma visita ao sitio da revista. Das 14 principais chamadas estampadas na primeira página, apenas quatro poderiam ser apropriadamente classificadas sob o rótulo de “ciência básica”, a saber: “Descobertas de dinossauros ao acaso”, “Educação na Terra e no espaço”, “Cinema rupestre” e “Mulheres na química”. É bom ainda ressaltar que, dessas quatro manchetes, apenas a primeira levava a um artigo de divulgação; as outras três eram chamadas para matérias reportando notícias vindas de fora do país.

Mais ciência, menos provincianismo

Das outras 10 manchetes, quatro tinham a ver com ciências aplicadas ou tecnologia – “Casa feita de restos”, “Detecção precoce”, “Controlando multidões” e “Grafeno será o silício do século 21?”. As seis manchetes restantes tinham a ver com ciências sociais ou artes – “A viagem e a pesquisa nas humanidades”, “Missão: fotografar o Brasil”, “A universalidade da razão”, “Nelson Rodrigues: um trágico no imaginário social”, “O futuro a quem pertence?” e “Cálculos entre letras”.

Posso estar exagerando, mas tenho a impressão de que as ciências naturais (sobretudo as básicas) estão sendo deixadas de lado. Pessoalmente, acho uma pena. Em vez de artigos repisando as mesmas questões provincianas que há anos dominam os cadernos de cultura dos jornais brasileiros – a Semana de Arte Moderna, a Tropicália ou a obra de Nelson Rodrigues –, preferia que a revista se voltasse mais para questões propriamente científicas: de onde vieram os elementos da Tabela Periódica? O que há no interior do planeta? O que é e como é gerado o campo magnético da Terra? Como e quando surgiram os oceanos? Por que o céu é azul? Por que o mundo é verde? No fim das contas, acho que são questões mais ou menos como essas que borbulham na cabeça da gente quando temos diante de nós uma revista que tem a palavra “ciência” no nome.

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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)]