Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O debate rebaixado

O presidente do PT, Rui Falcão, queixou-se do tratamento dado pelas oposições – grande imprensa e Ministério Público Federal incluídos – ao governo da presidente Dilma Rousseff. Acusou-as de querer “desconstruir” a política econômica do Planalto e a imagem de Dilma como gestora.

Análises feitas nos meios acadêmicos ou publicadas na imprensa nunca são estritamente imparciais. No entanto, generalizações praticadas no palanque do maniqueísmo tornam mais obscuro um debate rebarbativo por natureza.

Existem avaliações cujo propósito é descrever com precisão. Podem ser úteis caso a margem de acerto seja nelas maior do que a de erro e desde que não chovam no molhado. E existem as outras, que trafegam entre o equívoco e o desvario. Quanto mais afastadas dos fatos, menos pertinentes.

“Torcer contra” é praxe

Houve uma expectativa oposicionista de surgimento de problemas de abastecimento de energia elétrica? Houve. “Torceram contra”, como disse a própria presidente. Nisso, as oposições repetiram uma prática longa e obstinadamente adotada pelo PT. É um tremendo lugar comum, mas não há melhor exemplo disso do que as críticas de Lula ao Plano Real.

Pseudoavaliações desse tipo alimentam uma cobrança que amesquinha os horizontes e reduz a margem de manobra dos governantes. Obriga-os a aceitar uma agenda adversa à reflexão, ao exame do maior número possível de elementos de um problema. Como o curtoprazismo reina quase absoluto, diminuem as chances de acerto no longo prazo.

Preservar ou explorar?

Entre a miríade de exemplos evocáveis está a proliferação de hidrelétricas na Amazônia. O professor aposentado da USP José Tundisi, autoridade internacional em recursos hídricos, questiona a política realizada há décadas em rios da Amazônia – Tocantins, Xingu, Madeira, Trombetas, Teles Pires, entre outros.

Ele reiterou sua avaliação no final de outubro de 2012, em Belo Horizonte, durante o 2º Encontro Preparatório para o Fórum Mundial de Ciências (FMC), que será realizado no Rio de Janeiro em novembro deste ano.

– Quantas represas mais podemos construir na Amazônia vis-à-vis a necessidade de preservar recursos de alta importância estratégica do país do ponto de vista da biodiversidade e da capacidade evolutiva do sistema? – indagou Tundisi.

O evento, aberto à participação de qualquer pessoa interessada, não teve cobertura da mídia jornalística.

Desperdício esquecido

Ambientalistas e barrageiros duelam nos extremos. Enquanto isso, pouco se fala dos desperdícios (de energia propriamente dita e de energia em forma de água). Tundisi contou que as perdas nos sistemas de abastecimento podem chegar a 60%, como acontece em Belém do Pará.

Não há só desperdício, há também mau uso da água, que tem consequências graves: “Em certas cidades, os hospitais estão entupidos de gente para tratar de gastroenterite, quando poderiam estar tratando de outras doenças”, disse o professor. Deu como exemplo desse problema Altamira (PA), onde só 1% da água do Rio Xingu usada para abastecimento é tratado. “A população está usando poços, todos contaminados”, relatou. Essa contaminação inclui substâncias tóxicas que provocam grande incidência de doenças, segundo Tundisi.

R$ 130 por mês

Programas sociais de transferência de renda são outro exemplo. Nem sempre a imprensa os recebe acriticamente. Em geral, a crítica tem um tom moralista: o programa é usado para alimentar um eleitorado cativo, o que é uma parte da verdade.

Recentemente, porém, a professora de economia da UFRJ Lena Lavinas se fez porta-voz dos dois terços de brasileiros que, em pesquisa de opinião, concordaram com a afirmação de que é baixo o benefício médio de R$ 130 mensais conferido pelo Bolsa Família (Folha de S. Paulo, 3/2, “Boa conta, sem truques, inclui mais parâmetros além da renda”).

Lavinas escreveu que o Bolsa Família “deveria ser mais efetivo na definição dos parâmetros para estimar a magnitude real e incômoda da miséria”. O valor de R$ 70 per capita mensais é mantido desde o início de 2009. Nesse intervalo, os salários, inclusive o mínimo, subiram, o IPCA acumulado (até dezembro de 2012) foi de 24,53%. “Atualizada, a linha de indigência valeria hoje R$ 87,17, aumentando o contingente de miseráveis”, calculou a economista. E continuaria sendo um valor dolorosamente diminuto.

É preciso ser muito pobre ou muito insensível para achar que o valor não é baixo, mas o etos governista é encarar os reparos como parte de uma campanha difamatória. Reação que não mudou desde o tempo de FHC, quando esses programas foram iniciados em âmbito federal e o PT era a principal oposição.

Argumentos aviltados

A crítica estreitamente politizada, que procura desqualificar o adversário, reduz o alcance do debate público. Agrava a impotência dos governos, obrigados, nas democracias, a embalar em ritmo eleitoral respostas a desafios que exigem décadas de planejamento e ação continuada.

De dois em dois anos, no Brasil, os argumentos são submetidos ao crivo implacável do marketing de campanha política, que os torce e retorce para no final reduzi-los à expressão mais simples, mais pobre, mais eficaz do ponto de vista da comunicação de massa.

Pôr o dedo nessa ferida requer da mídia jornalística independente, profissional, um esforço considerável. Crucial para ajudar o país a se olhar no espelho e ver refletidas suas muitas – e verdadeiras – faces.