Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A presidente, a inflação e a retórica desastrosa

A presidente Dilma Rousseff queixou-se na quarta-feira (27/3) de manipulação de suas palavras, depois de ter falado sobre inflação e política anti-inflacionária em uma entrevista em Durban, na África do Sul. Não disse quem manipulou. Esbravejou diante dos repórteres e postou no site do Palácio do Planalto um recado cheio de indignação.

Nenhum jornal circulou com suas declarações até o dia seguinte. Mas a entrevista foi transmitida imediatamente pelos canais de televisão e repetida várias vezes durante o dia. Além disso, as suas palavras foram noticiadas pelas agências de notícias. O mercado reagiu como se a presidente houvesse dado sinais de tolerância a uma inflação bem acima da meta de 4,5% – ou, como prefere o governo, bem acima do centro da meta.

Não se poderia acusar a imprensa de manipulação. O encontro com a imprensa, em Durban, foi gravado e transmitido ao vivo e em cores, com todas as palavras e todos os gestos. No fundo da cena estava o presidente do Banco Central (BC), Alexandre Tombini. Ninguém além dele pode falar com segurança sobre seus sentimentos, naquela ocasião, mas sua expressão era de desconforto. Tomadas ao pé da letra, as palavras da presidente indicavam uma condenação do uso dos juros no combate à inflação. Além disso, ao tocar nesse tema a presidente reforçou as dúvidas sobre a autonomia do BC.

Fenômeno complexo

Para acusar os meios de comunicação de manipular suas palavras a presidente precisaria desconhecer a presença das tevês, o uso de gravadores e as possibilidades de transmissão imediata das notícias. Os operadores do mercado financeiro talvez fossem o alvo da acusação, mas, nesse caso, a reação presidencial seria indefensável. Aqueles operadores teriam reagido, como de fato reagiram, a palavras ditas publicamente, gravadas e distribuídas por vários canais de informação. Interpretar a fala de autoridades, muitas vezes de maneira defensiva, é parte de sua função. Toda autoridade deve saber disso e, portanto, falar com cautela e responsabilidade.

A presidente arriscou-se duas vezes. Primeiro, ao falar sobre inflação e política anti-inflacionária, assuntos especialmente perigosos num país onde os preços ao consumidor subiram 6,31% nos doze meses terminados em fevereiro. O aparente desprezo ao BC como centro de formulação da política monetária agravou o risco. O segundo escorregão ocorreu quando a presidente, ao saber das consequências de suas palavras, falou em tom indignado sobre manipulação.

Previsivelmente, os jornais juntaram os dois fatos – a fala inoportuna e a acusação vaga de manipulação. Em vez de ser citada por um erro, a presidente foi citada por dois. A imprensa descreveu também a tentativa de Tombini de corrigir o estrago. Numa entrevista urgente à Agência Estado, ele afirmou o compromisso da presidente com o combate à inflação e aproveitou para lembrar um detalhe pouco levado a sério, há mais de um ano, por muitos analistas: a competência exclusiva do BC para decidir sobre os juros.

Na quinta-feira (28/3), o BC divulgou seu Relatório de Inflação, um documento trimestral sobre produção, preço, contas públicas e contas externas do Brasil. Pelas novas projeções. A inflação brasileira chegará a 5,7% neste ano e continuará acima do centro da meta pelo menos até o primeiro trimestre de 2015. Além disso, a análise dos fatores inflacionários indica um fenômeno bem mais complexo do que aquele descrito pela presidente. Por mais um dia os jornais puderam continuar explorando a fala presidencial.

Arroubos retóricos

O detalhe mais espantoso dessa história foi a tentativa da presidente de falar de manipulação. Que manipulação poderia ocorrer, quando sua entrevista foi transmitida e retransmitida uma porção de vezes por todos os meios de comunicação? Quanto à reação desfavorável dos mercados, é um risco permanente e nenhuma autoridade pode permitir-se o luxo de ignorar esse dado.

O incidente parece confirmar três características da ação presidencial. Em primeiro lugar, a presidente Dilma Rousseff insiste em afirmar a autonomia operacional do BC, mas continua incapaz de agir de acordo com suas palavras. Em segundo, ela tem ideias próprias a respeito da inflação e as expõe sem ressalvas, criando curtos-circuitos no mercado. Em terceiro, tem dificuldade para distinguir um comício nos grotões de uma entrevista sobre assuntos delicados – como a política anti-inflacionária – e tecnicamente complexos.

Certos arroubos retóricos podem ser compatíveis com o ambiente de comícios. Mas são perigosos quando podem afetar imediatamente a formação de preços nos mercados.

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Rolf Kuntz é jornalista