Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A venda ingênua da força de trabalho

Eduardo Baptistão é um artista brasileiro de nível internacional. Sua especialidade, caricaturas. Com elas já foi reconhecido inúmeras vezes. Ganhou duas vezes o World Press Cartoon, foi cinco vezes eleito pelo Troféu HQ Mix o melhor no Brasil. Retratou o papa Bento 16 e Einstein, Mick Jagger e Roberto Benigni, mas também Fernando Henrique e Lula, os Novos Baianos e Vinícius de Moraes – em imagens que ficarão para a posteridade.

Na sexta-feira (5/4) Baptistão foi demitido, após 22 anos, da empresa onde trabalhava: o jornal Estado de S.Paulo, o Estadão. Não é, e nunca foi, nenhum jornal de nível internacional. Mas ainda se exprime como se fosse. Arrogante, pouco tem a ver com a índole gentil do caricaturista. Foi um jornal que apoiou o golpe de 1964, e que surgiu diretamente das oligarquias paulistas – que defende até hoje. Hoje, em decadência caricatural (como conta aqui Paulo Nogueira), demite às dezenas, para que seus acionistas ainda se refestelem com algumas migalhas.

Mesmo assim, já foi considerado um dos melhores lugares para um jornalista trabalhar. Pelo menos até os anos 90, quando teve a honra de receber a força de trabalho de Baptistão, era assim. Saímos da faculdade e torcíamos por uma vaga no jornal. Sistematicamente, trabalhamos lá por alguns anos e fomos expelidos, um a um. Em prática que causaria horror na Europa, o matutino se especializou em mandar embora pessoas com muitos anos de casa, para cortar custos.

Baptistão despediu-se da empresa com um post apaixonado. Publicou a foto de dois crachás (um dos anos 90 e um recente), e fez um texto com elogios rasgados ao jornal, a quem dedica “gratidão eterna”. Considera que deve a ele tudo o que conquistou profissionalmente, e muito do que obteve pessoalmente: “O que falar dessa casa que me acolheu, me abrigou e me fez crescer pelos últimos 22 anos?”

Seu desabafo gerou inúmeras palavras de solidariedade em um grupo no Facebook intitulado (de modo sintomático) eXtadão, formado por profissionais que trabalharam no jornal. Muitos ali ainda não entenderam o que acontece no mercado. Enxergam problemas de gestão, ou personalizam a política da empresa neste ou naquele executivo mais cruel. Outros lembraram ao artista que é vasto o mundo “aqui fora”.

Fim da proteção

As palavras de Baptistão ilustram uma projeção comum aos trabalhadores no século XX, incompatível com os tempos atuais: a da empresa como uma espécie de protetora. Uma empresa-mãe, provedora, generosa. O próprio Estadão era conhecido no meio jornalístico como uma “estatal”, onde não era tão fácil ser demitido. Podia se fazer ali uma carreira estável, ter uma vida pessoal estável – em simbiose com a aparente estabilidade do prédio encastelado na Marginal do Tietê.

Esse mundo acabou. Já há algum tempo. A ficha, porém, não caiu para todos. Baptistão, o profissional educado, concentrado, afável, ainda demonstrou estar atrelado a essa percepção antiga, a de quando a CLT era norma respeitada no mercado. Como se fizéssemos parte de uma espécie de "família". Não sem ingenuidade, ele não percebeu que é muito mais relevante como artista do que a empresa é (cada vez mais autista) como jornal. E que este o usou enquanto era conveniente. Não por bom-mocismo, por instintos protetores. Muito pelo contrário.

Aqui cabe relembrar um abecedário da questão trabalhista. Um empresário capitalista usa a nossa força de trabalho e ganha dinheiro com ela. Oferece em troca uma pequena fração da renda obtida, em forma de salário. Fica com o resto. Essa lógica foi diagnosticada com brilhantismo pelo alemão Karl Marx, na teoria da mais-valia. Esta é um dos motores do modo de produção onde vivemos. Outra característica desse sistema é a voracidade com que os detentores do capital se lançam em busca de mais lucro. Muito aquém da “sustentabilidade”.

Nesse jogo o ser humano e o meio ambiente são apenas alguns meros detalhes. Tudo pode soar evidente para quem está familiarizado com ciências sociais ou se manteve ressabiado em relação aos cantos de sereia empresariais. Mas ainda não soa óbvio para muita gente – de classe média, boa formação técnica, muitas vezes talentosa – que ainda espera ser uma exceção no mercado. “Comigo não vai acontecer”, pensamos, pensaram os participantes do grupo eXtadão. E, claro, um dia a guilhotina vem – impiedosa.

Os anos 2000 consolidaram várias implosões. Mesmo essa lógica exploradora do século XX foi substituída por uma precariedade maior. A CLT está sendo rasgada, substituída pelo formato das pessoas jurídicas, as PJs. Os direitos trabalhistas são desafiados em meio a discursos legalistas, de ocasião, dos grandes jornais – cínicos, portanto. E não sabemos mais como será nossa aposentadoria. Isso dói. Temos filhos, família, preocupação com a saúde. Foi-se aquele mundo onde esperávamos “participação nos lucros” (esse engodo) e jogávamos futebol com verba da empresa (ah, aquela mãezona).

Inferno e paraíso

Mas é pior fazer de conta que não está acontecendo nada. A desmobilização dos jornalistas como categoria está longe de ser a única no cenário brasileiro. Fomos atirados, como gladiadores, num circuito predatório, em meio a um discurso que associa o sucesso ao desempenho de cada um. Ou até à nossa índole. Tudo tecido cuidadosamente para que sentíssemos culpa pelos nossos “insucessos”, por não termos conseguido sobreviver em um mercado que reconheceria aqueles que “são bons”, que têm talento. Quando demitidos, pensamos: onde erramos?

Pura manipulação, claro. Muitas vezes o chefete de plantão tem prazer de limar justamente aquele profissional que tenha um espírito mais contestador, ou criativo. É assim no Estadão e em empresas dos mais diversos setores da economia. Somos peças em uma engrenagem, como bem definiu o editor que me demitiu do jornal, em 2001 (o jornal descobriu que eu era uma peça que não encaixava mais, após seis anos), e como bem retratou o cineasta Elio Petri, nos anos 70, com o filme A Classe Operária vai ao Paraíso.

(Nesse filme o protagonista, o metalúrgico Lulu, interpretado por Gian Maria Volonté, perde o dedo na fábrica e se esforça para não perder a razão.)

Os jornalistas não encontraram no divã as respostas a essas novas demandas. O mercado está abarrotado de expelidos, somos hoje um exército gigantesco de reserva. Quem foi menos teimoso rumou para outros campos: a arte, a academia. Nem as assessorias de imprensa (universo no qual vendemos a força de trabalho diretamente para as grandes corporações) oferecem as possibilidades de antigamente, com melhores salários, espaço para profissionais de cabelo branco. Repetem a lógica precarizada das grandes redações.

Outros seguem tomando o jornalismo como algo vital, como um modo de perceber o mundo. Como uma necessidade política, existencial. Tateamos. E, justamente os que tentam afirmar sua independência política mínima, sua disposição de não se submeter a cada capricho de editores-capacho, distanciam-se cada vez mais daquelas vagas às antigas, cada vez mais escassas.

A horizontalização do mundo das informações aponta para novo campo. Mais democrático. E mais incerto: ele não tem nada a ver com aquela ilusão de que trabalhávamos em empresas-mães. Precisamos nos reconfigurar, quebrar paradigmas.

Estamos de volta a uma carruagem, numa espécie de corrida para o oeste sem telégrafo (mas com internet). Somos nós – e não o Estadão ou os modelos de comunicação autoritários, militarizados – que vamos construir um novo mundo da comunicação. Agora de forma coletiva – nós que nos individualizamos tanto.

Artistas como Baptistão terão mais espaço nesse circuito, ao menos do ponto de vista da liberdade de criação, da independência. Do ponto de vista da estabilidade (que nunca era para todos, admitamos), essa carruagem atolou. Era o nosso ouro-de-tolo.

Ficamos sem crachá. Mas também sem as correntes.

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Alceu Luís Castilho é jornalista, autor de Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro (Editora Contexto, 2012)