Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O medo do outro

Com o atentado à Maratona de Boston da semana passada, constata-se que as últimas presidências dos Estados Unidos carregam sequelas distintas dos três grandes marcos de terrorismo ocorridos dentro de suas fronteiras. Além de distintas, são sequelas tragicamente complementares. E esta fusão, observada no episódio mais recente, tem tudo para ampliar uma perigosa fenda social que há uma década contamina a vida americana: a do medo do outro.

Foi durante o mandato de Bill Clinton que ocorreu, exatamente 18 anos atrás, o primeiro e mais sangrento atentado a bomba praticado por um filho da terra contra a sua pátria. Foi na manhã de 19 de abril de 1995 que Timothy McVeigh, de 27 anos, veterano condecorado na Guerra do Golfo, branco, natural de uma área rural do estado de Nova York, detonou um caminhão abarrotado de explosivos na base do edifício Alfred P. Murrah, em Oklahoma City. O prédio de nove andares ocupava um quarteirão inteiro e abrigava várias agências regionais do governo federal.

A explosão matou 168 pessoas, inclusive 19 crianças, fez mais de 500 feridos, e deixou a nação perplexa com a percepção de que não só em terras estrangeiras ocorriam atentados. McVeigh foi preso poucas horas depois da tragédia. Declarou-se orgulhoso do seu feito e de sua motivação: odiava o governo dos Estados Unidos por considerá-lo tirânico e de leis injustas. Condenado à morte, foi executado seis anos mais tarde. Seu cúmplice Terry Nichols cumpre prisão perpétua e dois outros envolvidos foram beneficiados por colaborarem com a polícia.

Ainda assim, as mortes provocadas por McVeigh jamais foram associadas à palavra terrorismo, reservada a forasteiros. Ele e os quase quarenta americanos que, de lá para cá, já praticaram ou planejaram praticar atentados com motivações políticas continuam a ser vistos como lobos solitários que se desgarraram da sociedade. Perigosos, mas não terroristas.

“Homem negro”

Foi o apocalipse da manhã ensolarada de 11 de setembro de 2001 que trouxe o terror para a sala de jantar. Além das ruínas das Torres Gêmeas de Nova York e dos 3 mil mortos engolidos em seus escombros, foi todo um modo americano de viver que naquele dia cessou de existir. Foi difícil aceitar que o ato mais audacioso jamais praticado na história do terrorismo fora urdido com perfeição em cavernas do Afeganistão. Complexo no planejamento, preciso na execução e insuperável no resultado desejado, o atentado dos radicais islâmicos da al-Qaeda deixou o país ferido.

As respostas do presidente George W. Bush ao ataque receberam aprovação quase unânime dos americanos, refletindo o estado de fervor patriótico que emergiu das cinzas. A indefensável invasão e ocupação do Iraque, que durou dez anos, a guerra no Afeganistão que dura até hoje, o alargamento do Poder Executivo, o estabelecimento de um aparato de segurança interna que atropela vários direitos – muito foi sendo aceito e adotado em nome da proteção dos Estados Unidos contra o inimigo externo. Com naturalidade inquietante, o perfil desse inimigo consolidou-se no imaginário nacional como sendo islâmico, árabe, viajante de pele escura, portador de passaporte de algum país suspeito.

Foi no primeiro ataque terrorista em solo americano da Presidência Barack Obama que as certezas da era Clinton e as fantasias dos tempos Bush se embaralharam.

O primeiro suspeito do atentado da semana passada, ainda em pleno pandemônio da carnificina, foi um aluno da Boston University que teve o corpo dilacerado por fragmentos de metal. Enquanto ele recebia tratamento no hospital, seu apartamento foi esquadrinhado por um esquadrão antibomba com cães farejadores, agentes do FBI, da Imigração e da Homeland Security. O colega de quarto viu-se submetido a um interrogatório de cinco horas.

O jovem hospitalizado teria chamado a atenção das autoridades, em meio ao caos dos outros 176 feridos e 3 mortos, por ter tido a ideia de sair correndo do local da explosão, por exalar forte cheiro de explosivo e porque alguém ouviu-o perguntar se havia mais bombas – coisas normais dadas as circunstâncias. Mas ele era de nacionalidade saudita, tinha feições árabes. Assim, no primeiro dia, o suspeito oficial foi um “cidadão saudita”, posteriormente rebaixado para “o homem errado que se encontrava no lugar errado”.

A rede de televisão CNN chegou a informar que a polícia procurava “um homem negro ou de pele escura, com sotaque estrangeiro”. Não surpreende, assim, que dois homens embarcados em Boston com destino a Chicago, no dia seguinte à tragédia, e que conversavam em árabe, tiveram de descer do avião por solicitação dos outros passageiros, atendidos pela empresa aérea.

Vítimas colaterais

“Rezo para que não seja um muçulmano”, dizia o título de um artigo publicado semana passada pelo dramaturgo americano Wajahat Ali, referindo-se à autoria do atentado. Suas preces não foram atendidas. Mas tampouco parece certo que o ato tenha sido orquestrado pelo inimigo externo de sempre.

Pelo menos até a noite de sexta-feira (19/4) quando este artigo foi escrito, o perfil incompleto dos irmãos Tsarnaev, identificados como responsáveis pelo atentado, mais parecia o de dois jovens imigrados que surtaram, e se autorradicalizaram, do que o de membros de uma organização terrorista como a al-Qaeda. Sequer parecem ter traçado um plano de fuga para depois do atentado. Permaneceram na cidade, desencadeando a maior operação urbana de caçada humana de todos os tempos. Tamerlan, de 26 anos, o mais velho dos irmãos Tsarnaev, foi morto no primeiro confronto. O caçula Dzhokar, de 19 anos, manteve paralisada uma região metropolitana de 5,8 milhões de habitantes e monopolizou uma força de milhares de homens por outras 24 horas, até ser rendido.

Nascidos na Chechênia, um parecia integrado à vida americana, o outro não. Um se naturalizara no ano passado, o outro não. Uma das vítimas colaterais mais imediatas do atentado de Boston pode ser o adiamento por um bom tempo da crucial reforma da lei de imigração.

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Dorrit Harazim é jornalista