Na quinta-feira (18/4), a manchete do jornal nova-iorquino New York Post saltava das bancas: “Homens da Mala [bag men], Agentes Federais Buscam Estes Dois”. Nenhum deles era Tamerlan ou Dzhokhar Tsarnaev, os irmãos de uma família de chechênios que paralisaram Boston durante a sexta-feira com sua fuga espetacular, concluída com a morte de Tamerlan e a apreensão, horas depois, de Dzhokhar.
Os dois jovens que não se chamavam Tamerlan ou Dzhokhar, estampados em uma foto da primeira página, eram culpados de estar presentes à Maratona de Boston e de portar mochilas. Tiveram suas vidas transformadas num inferno graças à manchete errônea do tabloide bastardo de Rupert Murdoch. Pedido de desculpas? Nem pensar.
Uma semana cheia de grandes acontecimentos – as bombas na maratona, a explosão na fábrica de fertilizantes no Texas e a implosão da tentativa de passar uma lei que imprima um grão de civilidade ao obsceno comércio de armas de fogo nos Estados Unidos. Uma semana em que os Prêmios Pulitzer foram anunciados, mas não temos motivo para celebrar o jornalismo.
“Uma semana vergonhosa”, disse Barack Obama se referindo à paralisia legislativa em Washington. Mas há mérito pela vergonha da semana em Nova York, capital editorial da mídia americana.
O que dizer de talk-shows que preenchem o vácuo de conteúdo com chamadas de ouvintes especulando sobre quem é culpado pela tragédia de Boston? Sim, vamos convidar o público a revisitar todos os seus preconceitos. Com ajuda, mais uma vez, do New York Post, que declarou um cidadão saudita “suspeito” do atentado.
Quebra-cabeça digital
O primeiro ato de terrorismo contra civis bem-sucedido em solo americano desde 11 de Setembro 2001 foi tratado com o critério que a velocidade e onipresença da mídia digital podem influenciar. A certa altura, um veterano correspondente de defesa de uma rede americana jogou a toalha: alguém há de estar certo, são tantas versões da investigação em Boston que só posso confirmar a que recolhi entre as fontes em quem confio.
O que ele quis dizer é que achamos que não podemos nos dar ao luxo de esperar e me incluo entre os indiciados pelos tropeços da velocidade. Pela mídia social ou eletrônica, recolhemos a versão que consideramos mais confiável. Ajuda ter um canivete suíço de testes de ceticismo para evitar destruir reputações, indiciar etnias, desconfiar de triunfalismos oficiais e testemunhas ávidas por um lugar sob os refletores da fugaz celebridade viral.
Mas, como disse um jovem responsável pelo feed do Twitter de um programa de análises de, imaginem, mídia, há algo inebriante em chegar primeiro. O fato é que não pagamos a conta pelo excesso.
Quando ouvimos o comandante da polícia de Boston dizer que a cidade podia, afinal, dormir tranquila, sem que ele soubesse da motivação ou da existência de cúmplices nos atentados; quando um senador republicano de Iowa associou a reforma da imigração à tragédia em Boston; quando um senador como John McCain, sobrevivente de torturas no Vietnã, pediu que Dzhokhar, de 19 anos, fosse tratado como um combatente inimigo, decidindo, antes do Poder Judiciário entrar em ação, que houve um ato de guerra; e quando a multidão, diante da apreensão do ensanguentado Dzhokhar grita “USA!, USA!” como se ele representasse a não América, apesar de ser cidadão naturalizado, criado e educado em Boston e de ter americanizado a grafia de seu nome para Jafar; e quando vemos que estas manifestações são amplificadas na maratona digital, é o caso de perguntar: Quem é este outro entre nós?
É possível colecionar amigos numa grande cidade americana, participar de esportes, atrair admiração, ganhar uma bolsa de estudos, e, ao mesmo tempo, viver uma vida alternativa de ódio e alienação online? Sim, é a resposta simples. Mas não há a menor promessa de simplicidade no desfecho do atentado.
Os pais de Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev viviam em contato constante com os filhos do Daguestão e não conseguem reconhecer os meninos que criaram nos suspeitos do atentado em Boston.
Hoje é possível descobrir um grande número de fatos sobre um estranho em 24 horas. Mas não é possível dizer que o conhecemos, reunindo as milhares de peças do quebra-cabeças de pegadas digitais.
******
Lúcia Guimarães é jornalista, em Nova York