Preparado no âmbito do Tow Center for Digital Journalism da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia, o documento a seguir foi traduzido com exclusividade para a Revista de Jornalismo ESPM, que autorizou sua reprodução neste Observatório. Trata-se de um relatório de pesquisa sobre o jornalismo pós-industrial, lançado em 2012, e dividido em três partes: Jornalistas, Instituições e Ecossistema. A introdução ao documento está publicada sob o título “Adaptação aos novos tempos“, os demais capítulos serão apresentados nas próximas semanas. Para obter a íntegra do material, clique aqui e peça a sua Revista de Jornalismo ESPM.
O relatório apresenta o atual estágio do jornalismo, em que as condições técnicas, materiais e os métodos empregados na apuração e divulgação das notícias até o fim do século 20 já não se aplicam. Estamos em meio a uma revolução, e a adaptação às novas fronteiras da profissão é a condição de sobrevivência nesse cenário, que prevê o uso intensivo de bases de dados, além da interação com múltiplas fontes e com o público.
O foco do trabalho é a imprensa norte-americana, mas as lições a serem tiradas da análise servem a todos os interessados nos rumos dessa indústria.
Parte 1
No dia 28 de junho de 2012, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou sua decisão sobre a obrigatoriedade de contratação de plano de saúde privado por todo cidadão do país – prevista na chamada Affordable Care Act, a lei da reforma da saúde norte-americana. Em pleno ano de eleições, e diante da possibilidade de que um pilar da legislação proposta pelo presidente Barack Obama fosse julgado inconstitucional, a decisão já não tinha impacto só para o setor de saúde. Virara também um grande fato político.
Nos dias que antecederam a decisão, todo veículo importante de comunicação cobriu o caso. O veredicto foi anunciado às 10h07 do dia 28. A CNN anunciou que o dispositivo fora rejeitado. Já o blog SCOTUSbloginformou que a obrigatoriedade fora mantida.
O vexame que a emissora de TV a cabo deu ao levar ao ar uma informação incorreta só perdeu, em dimensão, para a projeção conquistada naquele instante pelo SCOTUSblog, até ali um pequeno site desconhecido cuja única missão era cobrir a Suprema Corte. Naquele dia, o SCOTUSblogvirou a grande fonte dos últimos desdobramentos sobre o caso e de análises indispensáveis sobre o parecer do tribunal. Mais tarde, ao esmiuçar a cobertura do blog no dia 28, a revista The Atlantic informava que às 10h22 – quinze minutos depois de anunciada a decisão – o site registrava perto de um milhão de visitantes (foi preciso instalar mais servidores para acomodar o salto no tráfego).
O SCOTUSblogfoi criado em 2003 por Tom Goldstein e Amy Howe, marido e mulher. Nenhum dos dois era jornalista: eram, ambos, sócios de um escritório de advocacia e professores nas faculdades de direito de Harvard e Stanford. Na manhã da decisão, Goldstein cobriu o procedimento todo ao vivo; o material que foi postando no blog serviu de base para a cobertura do canal público de TV C-SPAN 3. Segundo Goldstein, o episódio foi o “Superbowl” do site – site cuja meta seria levar ao público a melhor análise da decisão no momento mais pertinente.
O SCOTUSblogé prova de que o jornalismo pode ser exercido fora de uma redação tradicional por gente livre das pressões comerciais e protocolares típicas do ofício. Em um mundo que o professor norte-americano de jornalismo Jeff Jarvis descreve com o mote “do what you do best and link to the rest” (literalmente, “faça o que é seu forte e ponha links para o resto”), o modelo do SCOTUSblogtraz a cobertura mais consistente da Suprema Corte – cobertura que, se honrada sua meta, também deve ser a melhor. O SCOTUSblognão vai despachar 25 jornalistas para o Haiti caso haja um terremoto (nem mandar alguém ir cobrir outra audiência da atriz Lindsay Lohan por dirigir embriagada). Não está substituindo a CNN – e nem precisa. O SCOTUSblogachou seu nicho e sabe qual é seu papel.
Se há jornalistas, é porque o público precisa saber o que aconteceu, e os motivos. A maneira mais eficaz e confiável de transmitir uma notícia é por meio de gente com profundo conhecimento do assunto e capacidade de levar a informação ao público na hora certa. No episódio acima, o SCOTUSblogcumpriu os dois requisitos. Embora tenha corrigido a “barriga” em questão de minutos (críticos, é verdade), a CNN a princípio deixou a desejar no quesito mais básico: informar o que o tribunal de fato decidira.
A goleada do SCOTUSblogé só um exemplo de como o velho território de jornalistas tradicionais está sendo invadido. Um mapeamento do novo ecossistema jornalístico revela exemplos muito mais radicais do que o desse blog (que, além dos advogados que o fundaram, até emprega jornalistas). Em certos casos, gente que nem é jornalista se mostrou capaz de exercer o ofício com tanta tarimba quanto profissionais da área – às vezes, até mais. Especialistas – seja o economista Nouriel Roubini discorrendo sobre a bolha imobiliária, o sociólogo Zeynep Tufekci falando de conflitos no Oriente Médio, a analista financeira Susan Webber no site Naked Capitalism– estão produzindo um conteúdo contextualizado melhor do que muito material criado por jornalistas tradicionais. E não é só questão de um indivíduo qualquer poder publicar sua opinião sem intermediários; no caso de doping do ciclista Lance Armstrong, o blog NY Velocity, especializado em ciclismo, saiu muito à frente da imprensa esportiva profissional (que, no episódio, foi de uma credulidade absurda). E sua cobertura foi muito melhor.
Uma questão interessante sobre o acesso direto de especialistas ao público surgiu quando a pirâmide de Ponzi erguida por Bernard Madoff foi desmascarada. O detalhe mais curioso do escândalo foi a Securities and Exchange Commission (a SEC, a comissão de valores mobiliários norte-americana) não ter dado ouvidos aos alertas certeiros e detalhados da fraude disparados pelo investidor Harry Markopolos. No blog de investimentos Seeking Alpha, Ray Pellecchia perguntou: “Se Markopolos tivesse um blog, [a fraude] de Madoff teria sido contida?”. Será que a SEC teria ignorado o alerta se, em vez de procurar a agência, Markopolos tivesse usado um blog para apontar publicamente a improbabilidade das operações de Madoff? Obviamente, é impossível saber. É fácil imaginar, contudo, que uma análise pública das maracutaias de Madoff teria tido mais impacto do que teve a cobertura do assunto por profissionais da mídia.
Também chegamos a um ponto no qual a “multidão” lá fora está disseminando a própria informação em tempo real para outros indivíduos e para o mundo. Hoje, é mais barato do que nunca reunir dados sobre qualquer mudança mensurável – e surgem algoritmos capazes de reordenar essa informação em frações de segundo e produzir relatos de acontecimentos que já passam no teste de Turing: ou seja, nada os distingue de textos redigidos por gente de carne e osso. E isso sem nenhuma intervenção de um jornalista.
Mas o retrato pintado pelas mudanças no ecossistema do jornalismo não é só de perda. Se de um lado velhos monopólios desaparecem, há, de outro, um volume cada vez maior de trabalho jornalisticamente útil a ser feito pela colaboração de amadores, multidões e máquinas. Uma corretora de commodities, por exemplo, não precisa de um repórter plantado em uma lavoura de trigo para entrevistar o agricultor: satélites podem produzir imagens em tempo real da cultura, interpretar essa informação visual e, num piscar de olhos, transformar tudo em dados úteis. A empresa norte-americana Narrative Science já produz textinhos com resultados financeiros de empresas para o site Forbes.com. Outro projeto, o Journatic, desperta tanto interesse como angústia com sua cobertura a distância de fatos “locais”. Quando praças em países do Oriente Médio são alvo de artilharia, a confirmação do estrago é feita por redes de testemunhas munidas de celular e especialistas em assuntos militares no Twitter– que garantem um testemunho em primeira mão e análise em tempo real dos fatos.
A lista daquilo que um jornalista pode fazer cresce diariamente, pois a plasticidade de tecnologias de comunicação muda tanto recursos de apuração de fatos como a conduta do público. Jonathan Stray, repórter da Associated Press e inovador da mídia, observou em um post:
Cada uma das atividades que compõem o jornalismo pode ser conduzida melhor dentro ou fora de uma redação, por profissionais ou amadores, por parceiros ou especialistas. Tudo depende da matemática do ecossistema e, em última instância, de necessidades de usuários.
Entender a reviravolta na produção de notícias e no jornalismo, e decidir qual a maneira mais eficaz de aplicar o esforço humano, será crucial para todo e qualquer jornalista. Para determinar qual o papel mais útil que o jornalista pode desempenhar no novo ecossistema jornalístico é preciso responder a duas perguntas correlatas: nesse novo ecossistema, o que novos atores podem fazer, hoje, melhor do que jornalistas no velho modelo? E que papel o jornalista pode desempenhar melhor do que ninguém?
Quando mídias sociais são melhores: amadores
O valor jornalístico de mídias sociais ocupa um espectro que vai do indivíduo munido de uma informação importante – a testemunha em primeira mão, o “insider” – até a coletividade. Bradley Manning, o soldado do braço de inteligência do Exército norte-americano acusado de vazar milhares de documentos do Departamento de Estado para o site WikiLeaks,ocupava um posto de importância singular; já o registro do rastro de detritos deixado pela explosão do ônibus espacial Columbia pela BBC exigiu vários observadores independentes. Um projeto do Huffington Post em 2008, o Off the Bus, ocupou um espectro similar: o relato de um discurso de Barack Obama em São Francisco, quando o presidente norte-americano aludiu a gente que se “aferra a armas e à religião”, veio de uma única fonte, a blogueira Mayhill Fowler; já a cobertura de convenções de eleitores [cáucuses]no Estado do Iowa foi feita por levas de indivíduos.
Quando uma força de operações especiais da Marinha norte-americana (os SEALs) matou Osama bin Laden, quem primeiro tornou pública a notícia foi Sohaib Athar (cujo Twitter é@reallyvirtual). Ou, nas palavras do próprio, “o cara que blogou ao vivo o ataque a [bin Laden] sem sequer saber”. Sohaib Athar não é jornalista (é consultor de TI em Abbottabad, no Paquistão, onde bin Laden foi encontrado) e talvez nem soubesse que estava fazendo jornalismo. Mas, como observou Steve Myers, à época no Poynter Institute, o rapaz “agiu como um jornalista”. No Twitter,Athar disse ter ouvido o barulho de um helicóptero e uma explosão. Na sequência, respondeu a perguntas, acrescentou informações quando julgou que havia fatos novos, seguiu o desenrolar da trama e contextualizou o episódio. Athar virou um recurso para jornalistas que tentavam reconstruir a cronologia dos eventos – uma parte do sistema de verificação que podia ser cotejada em tempo real com a versão oficial.
Em muitos acontecimentos de relevância jornalística, é cada vez mais provável que a primeira descrição dos fatos seja feita por um cidadão conectado, não por um jornalista profissional. Em certas situações – desastres naturais, chacinas –, a transição já foi concluída.
Nesse caso, como no de tantas outras mudanças no jornalismo, a erosão de velhas formas de agir é acompanhada da expansão de novas oportunidades e de novas necessidades de um trabalho jornalisticamente importante. O jornalista não foi substituído – foi deslocado para um ponto mais acima na cadeia editorial. Já não produz observações iniciais, mas exerce uma função cuja ênfase é verificar, interpretar e dar sentido à enxurrada de texto, áudio, fotos e vídeos produzida pelo público.
A “apuração dos fatos” ocupa um lugar de destaque na autoimagem do jornalismo: está no cerne daquilo que o jornalista faz – algo, que, em sua concepção, ninguém mais pode fazer; é o aspecto da ocupação que requer a habilidade mais tácita; é a função que serve de forma mais direta o interesse público. A importância desse trabalho de reportagem se reflete em muitas das batalhas mais perenes travadas em torno do jornalismo na última década e meia, da briga aparentemente interminável entre “blogueiros vs. jornalistas” ao conflito sobre agregação de conteúdo vs. cobertura própria.
Por ser considerado simplista ou metodologicamente ingênuo, o trabalho de reportagem costuma ser mal interpretado por gente de fora do meio. Obter informações descritivas cruciais de uma testemunha na cena dos fatos, questionar de forma incisiva respostas verbais de altas autoridades públicas, saber exatamente onde achar um documento crucial ou decifrar rotinas e idiossincrasias de complexas organizações modernas é uma empreitada intelectual nada banal – e, de quebra, um serviço público. Em muitos casos, os aspectos mais importantes do trabalho jornalístico individual seguem sendo o que sempre foram em sua melhor encarnação: entrevistar, observar em primeira mão, analisar documentos.
Não obstante, muitas das estratégias que defendemos não espelham diretamente o paradigma da reportagem tradicional. A maioria dos jornalistas, e das instituições jornalísticas, foi incapaz de tirar proveito da explosão de conteúdo de potencial interesse jornalístico trazida pela expansão da comunicação digital. O fato é que a maioria dos jornalistas, na maioria dos jornais, não passa a maior parte do tempo realizando algo que possa ser considerado uma apuração empiricamente robusta de fatos. Assim como a histórica falácia da “era de ouro” do jornalismo, a crença no valor do trabalho original de reportagem muitas vezes supera o volume real ao qual é produzido.
Ainda há muito jornalista que se restringe a um rol relativamente limitado de fontes na hora de colher informações para matérias de grande relevância, com o ocasional complemento de dados obtidos em comunicados de imprensa e por observação direta. Essa concepção do trabalho de reportagem centrado na fonte com autoridade exclui mídias sociais, a explosão de dados digitais, fontes de informação geradas por algoritmos e muitas das novas estratégias de coleta de informações que aqui destacamos.
Devia haver mais trabalho de reportagem, e não menos, e essa reportagem devia aprender a conviver com formas mais recentes de apuração de informações de interesse jornalístico. Reconhecemos que o colapso econômico de jornais representa uma ameaça bastante real para o trabalho de reportagem; a solução desse dilema exigirá uma nova atenção a instituições jornalísticas, algo que discutiremos em mais detalhe na próxima seção, sobre instituições.
Quando mídias sociais são melhores: multidões
Quando um número suficiente de atores é reunido, chega-se a uma multidão. E algo que essa multidão faz melhor do que jornalistas é coletar dados. Quando o Japão foi atingido por um terremoto em março de 2011, provocando um vazamento na usina nuclear de Fukushima Daiichi, a frustração devido à falta de informação atualizada sobre níveis de radiação levou muita gente munida de contadores Geiger a filmar e transmitir a radiação medida por esses aparelhos pelo site UStream.
Plataformas para partilha de dados em tempo real, como a Cosm, contam com grupos militantes de empresas, ou simplesmente cidadãos comuns, para recolher informações de seu interesse – sobre qualidade do ar, condições de trânsito, eficiência energética, o que seja – e compartilhá-las por meio de sensores bem baratos. Dados em um site desses têm um alcance, uma profundidade e uma precisão que simplesmente não podem ser garantidos por um jornalista sozinho.
Hoje, o cidadão também fotografa e filma fatos de interesse jornalístico – e, às vezes, como no projeto Off the Bus do Huffington Post em 2008, dá verdadeiros furos políticos. Plataformas sociais como Facebook e Twitterreconhecem que reunir e interpretar toda a informação hoje disponível é uma tarefa que extrapola a capacidade humana. Daí toda plataforma social e todo mecanismo de busca contar com algoritmos que ajudam a analisar que conteúdo está sendo compartilhado, que temas são mais discutidos (e por quem) e como surge e circula a informação.
A disponibilidade de recursos, como fotos tiradas pelo cidadão comum, não elimina a necessidade do jornalismo nem de jornalistas, mas altera sua função. O profissional deixa de ser o responsável por registrar a primeira imagem ou fazer uma observação inicial e passa a ser aquele que solicita a informação e, em seguida, filtra e contextualiza o que recebe. Um termo hoje muito usado, crowdsourcing, implica por si só uma relação de “um com vários” para o jornalista, que lança uma pergunta a um grande grupo de pessoas ou recorre a esse exército de gente para achar respostas. Mas essa multidão também pode ser uma série de indivíduos atuando por meio de redes – multidão que pode ser interrogada e utilizada para uma versão mais completa dos fatos ou para a descoberta de coisas que seriam difíceis ou demoradas de apurar com o modelo tradicional de reportagem.
Quando a máquina é melhor
Se há algo que a máquina faz melhor do que o homem é garimpar com rapidez grandes volumes de dados. A automação de processos e conteúdo é o território mais subaproveitado para derrubar o custo do jornalismo e melhorar a produção editorial. No prazo de cinco a dez anos, teremos informações produzidas a baixo custo e monitoradas em redes de aparelhos sem fio. Vão servir para várias coisas – informar às pessoas qual o melhor momento para usar a água para evitar a poluição dos rios, por exemplo, ou quando atravessar a rua – e levantam questões de ética, posse e uso da informação.
No setor de tecnologia, projetos novos como Palantir, Kaggle e Narrative Science estão eletrizando investidores com as possibilidades infinitas abertas pela coleta de dados e o uso de algoritmos para organizá-los.
Com uma equipe de 30 pessoas – dois terços engenheiros, um terço editorial –, a Narrative Science“produz narrativas completas a partir de dados numéricos brutos”, como diz o próprio diretor de tecnologia da empresa, Kris Hammond. Hammond e sua equipe de cientistas da computação buscam identificar elementos cruciais de um texto jornalístico e de que forma poderiam variar, seja para o resumo de uma partida de beisebol ou o anúncio dos resultados de uma empresa. Em seguida, programam um código que permite a conversão de dados em estado bruto em palavras. Esse conteúdo de baixo custo já está sendo vendido a empresas e veículos de comunicação tradicionais, entre outros.
A proposta da Narrative Science é automatizar a produção de textos padronizados como resultados financeiros de empresas e resultados de competições esportivas. Isso reduz a necessidade de intervenção humana em atividades repetitivas: em vez de ficar redigindo textos elementares, essa mão de obra é liberada para coisas mais complexas ou que exijam interpretação.
E, como sempre, essa “comoditização” permite a participação até de quem não pertence aos quadros tradicionais da profissão. Se uma criança está disputando uma partida de beisebol pela liga infantil e o pai usa um aplicativo para iPhone chamado GameChanger para registrar os resultados, a Narrative Science vai processar esses dados instantaneamente e produzir um texto com a descrição do jogo. Mais de um milhão de pequenos textos do gênero serão gerados só este ano.
Em entrevista à revista Wired, Hammond disse esperar que, no futuro, algo como 80% a 90% das matérias sejam geradas por algum algoritmo. Quando pedimos que desenvolvesse o pensamento, ele explicou que vai haver uma expansão do tipo de “matéria” que poderá ser produzida por máquinas à medida que mais dados de caráter local e pessoal forem sendo coletados e lançados na internet. Esses 90% implicam, portanto, não só dados em estado mais “granular”, mas um universo muito maior de matérias ou conteúdo sendo publicados, por um conjunto muito maior de repórteres, a maioria amadores. Esse tipo de reportagem será viável sempre e quando houver dados disponíveis nesse formato digital. E sempre e quando não houver dados nesse formato, como em uma audiência pública realizada por algum poder da União, será preciso um repórter para registrar os dados.
Segundo Hammond, as máquinas que sua equipe cria devem “pensar como um jornalista”; sua intenção é esmiuçar o que o jornalista faz e, em seguida, reproduzir a atividade com a programação. “Queremos que a máquina se aproxime das pessoas, [queremos] humanizar a máquina e produzir lampejos humanos em escala gigantesca.”
Repórteres e editores consideram esse cenário horripilante. Jornalistas e programadores (ou jornalistas com formação em ciência da computação) raramente trabalham com esse processo de replicação. “Falta uma boa compreensão da questão, no momento ainda são poucas as organizações jornalísticas com essa capacidade”, explicou Reg Chua, diretor de dados e inovação na Thomson Reuters.
Se a resposta à pergunta “em que situações um algoritmo é melhor?” for “para produzir textos a partir de dados estruturados”, e se o universo de dados estruturados de natureza pessoal, local, nacional e internacional estiver crescendo de forma exponencial, prever a automatização de 90% do conjunto de “matérias” não soa tão absurdo.
Quando o jornalista é melhor
Antes da chegada da máquina a vapor, todo produto têxtil era “artesanal” – no sentido de que era feito por artesãos. Não era, no entanto, muito bem feito; o homem não fabricava têxteis porque tinha alguma habilidade superior, mas por falta de alternativa. A máquina a vapor transformou a indústria têxtil, encerrando a participação humana no grosso da produção básica de tecidos – mas criou uma leva de novas ocupações para artesãos sofisticados, bem como para criadores de estampas e gerentes de fábricas.
A nosso ver, algo parecido ocorre hoje no jornalismo. A ascensão daquilo que conhecemos por “imprensa” coincidiu com a industrialização da reprodução e da distribuição de material impresso. Quando o custo de levar uma coluna de texto a milhares de pessoas começou a cair, organizações jornalísticas puderam canalizar mais recursos para a produção diária de conteúdo. Agora, estamos testemunhando uma mudança correlata: a automatização da coleta e da disseminação de fatos, e até de análise básica. Isso obviamente mexe com atividades que empregavam jornalistas não como artesãos, mas como meros braços – gente que desempenhava a função porque não havia máquina capaz disso. Mas também permite que meios de comunicação, tradicionais e novos, dediquem uma parcela maior de recursos ao trabalho de investigação e interpretação que nenhum algoritmo pode fazer – só o homem.
>> Prestação de contas
Uma pergunta que a sociedade está sempre fazendo, e para a qual exige resposta (em geral, quando algo dá errado), é “quem é o responsável?”. Se o jornalismo tem um impacto, e se parte de sua função é obrigar outras instituições a prestar contas de seus atos, o próprio jornalismo deve ser capaz de justificar os seus. Os três inquéritos (um deles policial) envolvendo o tabloide britânico News of the World, acusado de apelar para grampos telefônicos, demonstram de forma bastante vívida que, embora deva ter liberdade de expressão, o jornalista também precisa responder pessoalmente por seus atos.
Determinar de quem é o risco da publicação de conteúdo é legalmente importante (e se tornará ainda mais), tanto no terreno da imputação de responsabilidade como no da defesa de direitos.
A criação de programas e algoritmos que substituem o trabalho humano de reportagem envolve uma série de decisões que devem ser passíveis de explicação e responsabilização para todos os afetados. Na Narrative Science, jornalistas criam algoritmos; no Google News, engenheiros precisam entender o que torna uma matéria “melhor” para poder melhorar um algoritmo. Dados e algoritmos são tão políticos quanto charges e textos de opinião, mas raramente possuem a mesma transparência.
Novas áreas de responsabilização vão surgindo. Jornalistas e instituições jornalísticas terão de responder à seguinte pergunta: “O que vocês estão fazendo com meus dados?”. Talvez não importe saber quem é jornalista – exceto para a pessoa que está revelando informações a um jornalista.
Na mesma linha, salvaguardas e defesas garantidas a jornalistas devem ser estendidas a todo aquele que dissemina alguma informação de interesse público. Se um jornalista ou organização jornalística está de posse de seus dados, é razoável esperar que não sejam entregues à polícia.
Sabemos o que acontece quando informações delicadas, como a correspondência diplomática vazada para o WikiLeaks, são hospedadas em uma plataforma inerentemente comercial mas não inerentemente jornalística: o serviço pode ser suspenso. Tanto um braço da Amazon que prestava serviços de internet para o WikiLeaks como oPayPal, um mecanismo de pagamentos na rede, cessaram a relação com a organização. Em geral, é mais difícil detectar plataformas que praticam censura por motivos comerciais. Rebecca MacKinnon, pesquisadora do centro de estudos norte-americano New America Foundation e autora de Consent of the Networked, observa que, na Apple, o processo de aprovação de produtos para a popular loja de aplicativos é turvo e arbitrário, e que o rechaço de certas contribuições equivale a censura (como na decisão, notoriamente opaca, de rejeitar o mapa interativo de ataques com “drones” feito pelo programador Joshua Begley). Com a simples decisão de usar um produto da Apple, portanto, o jornalista toma parte na criação de um futuro com censura para a internet.
>> Eficiência
É evidente que o jornalista pode ser muito mais eficiente do que a máquina na apuração e disseminação de certas informações. É entrevistando gente que o profissional tem acesso aos fatos e se “apodera” de um assunto, às vezes com exclusividade. Ligar para o palácio do governo ou para a Secretaria de Educação, comparecer a reuniões e assimilar o que é dito ali, dar ideias e questionar – tudo isso aproxima a notícia da ideia de “drama” que o teórico da comunicação James Carey julgava central para o conceito do jornal. Pessoais e humanas, essas atividades convertem o jornalismo em uma espécie de performance da informação, e não mera divulgação de fatos.
>> Originalidade
Para ter ideias, criar algoritmos, formar movimentos e inovar em práticas é preciso originalidade de raciocínio. Um jornalista deve provocar mudanças, promover a experimentação e incitar à ação. Ainda é difícil criar e manter máquinas capazes de entender a realidade com a complexidade exigida para reconhecer o que há de importante em uma história como a de swaps de crédito ou por que é preciso investigar a situação fiscal de Mitt Romney. Essa bagagem cultural distingue repórteres, editores, designers e demais jornalistas de outros sistemas de coleta e disseminação de dados.
>> Carisma
Gente segue gente. Pelo mero fato de ser “humano”, portanto, o jornalista cria para si um papel mais forte. É um trunfo que a televisão, movida que é a personalidades, há muito explora, mas sempre numa via de mão única. Já num mundo de redes, a capacidade de informar, entreter e responder a feedback de forma inteligente é uma habilidade jornalística. É como disse Paulo Berry, ex-diretor de tecnologia do Huffington Post: “Hoje em dia, quando um jornalista é entrevistado, só há uma pergunta a fazer: quantos seguidores?”. Já que influência é um critério melhor do que mera quantidade, uma versão burilada seria: “Quem são seus seguidores?”. É fato, no entanto, que a atividade individual do jornalista – seus recursos e sua liberdade – está crescendo, e já não se restringe à marca do veículo e ao público deste.
No ecossistema da informação, o jornalista pode exercer o maior impacto no trabalho entre as massas, de um lado, e o algoritmo, do outro – no papel de investigador, tradutor, narrador. Sem explorar as possibilidades da multidão ou de algoritmos, certas modalidades de jornalismo se tornam insustentáveis, incapazes de acompanhar o mundo de redes e dados em tempo real que chegam ao público de todas as partes – de sensores instalados na lata de lixo a trending topics no Twitter.O lugar ocupado pelo jornalismo no ecossistema tem a ver, portanto, com a humanização dos dados, não com o processo de mecanização.
A adaptação a esse mundo é um desafio para o jornalista que aprendeu a trabalhar em redações cujo produto exigia, antes de tudo, exatidão e certeza, e onde havia unidade e clareza em torno de um pequeno conjunto de processos: apuração, redação, edição. A capacidade de reconhecer, localizar e narrar um fato relevante no formato mais condizente para um público específico segue sendo necessária, mas o número de formatos e a variabilidade da audiência aumentaram. E mais: técnicas do ofício que ajudarão o jornalista a definir e redefinir seu papel futuro e o setor no qual atua estão mudando.
O que um jornalista precisa saber?
Quando Laura e Chris Amico trocaram a Califórnia pela capital norte-americana, Washington – onde Chris foi trabalhar como desenvolvedor no site da rádio NPR –, o casal não conhecia o lugar, não conhecia a comunidade e não sabia onde Laura, que é repórter policial, iria achar trabalho.
“Não havia ninguém contratando”, diz Laura. O tédio do desemprego e o interesse dos dois pelo jornalismo cívico levou o casal a cogitar possíveis projetos na área. “Pensamos muito sobre o que ‘não’ vinha sendo coberto”, diz Laura, que mantém um pequeno aparelho para escutar a rádio da polícia onde a maioria exibe um despertador.
E o que não estava sendo coberto nas páginas policiais dos jornais locais e até do Washington Post, perceberam, era todo homicídio ocorrido na cidade. Para tapar esse buraco na cobertura, o casal criou o site Homicide Watch D.C.“Buscamos deliberadamente fazer algo que ninguém mais estivesse fazendo”, diz Chris. Com efeito, a decisão mais radical da dupla foi jogar na rede toda e qualquer informação apurada – aproveitar “o porco inteiro”, por assim dizer. O Homicide Watch D.C.é organizado por “objetos” – ocorrência, vítima, suspeito, processo – e usa informações estruturadas sobre local do crime, idade e raça dos envolvidos para compor um retrato detalhadíssimo desse tipo de ocorrência em uma única cidade. O próprio caráter pormenorizado do site ajuda no trabalho de apuração: se alguém entra na página e dá uma busca por um nome desconhecido, é uma deixa para Laura investigar se o alvo da pesquisa é uma vítima. Graças a isso, o site já conseguiu dar a notícia de um assassinato e descobrir a identidade da vítima antes que a polícia tivesse confirmado a ocorrência.
Não há “voz” autoral no site: é tudo escrito no estilo de agência de notícias. E, enquanto o relato de cada homicídio é factualíssimo, comentários de parentes das vítimas ou de outros membros da comunidade recebem bastante destaque. Ao registrar e tornar visível cada homicídio no Distrito de Colúmbia, onde fica a capital norte-americana, o site cumpre uma função jornalística bem clara e específica: com uma corrida de olhos pela página, é possível deduzir que o homicídio na região envolve, em sua maioria, homens, negros, jovens. Com um punhado de cliques, é possível conferir estatísticas detalhadas que confirmam essa impressão.
O Homicide Watch é um exemplo daquilo que Chris e Laura tinham certeza de que não poderiam fazer em uma redação. A conversão da informação em estatísticas e um site que prioriza vítimas e ocorrências, em vez da velha reportagem, estão em conflito com as prioridades de muita redação.
Embora a reportagem seja o pilar do jornalismo, o Homicide Watch mostra que ferramentas de reportagem podem ser usadas das mais variadas formas. Um banco de dados que converte cada detalhe apurado pelo repórter em informação estruturada com o intuito de produzir mais conteúdo é um bom exemplo disso. Um sistema de comentários que permite ao usuário destacar e filtrar observações úteis é outro exemplo. Nem todo jornalista terá domínio de toda área de trabalho. Por reconhecer a centralidade da reportagem, nossa atenção aqui se concentra em recursos novos que já são exigidos para um trabalho melhor de reportagem, mas que ainda são escassos.
Não há dúvida de que a bagagem técnica que Laura e Chris possuem (suas “hard skills”) são a base do sucesso do site. Laura é repórter policial, Chris é programador. A grande lição a tirar do caso, no entanto, não é só que esse conhecimento “concreto” tornou viável o site, mas sim que habilidades menos tangíveis (“soft skills”) permitiram a sua utilização.
Soft skillsdo jornalismo
>> Mentalidade
O que Laura e Chris Amico têm além da bagagem profissional – ela como repórter de polícia, ele como programador de sites – é o espírito de melhorar o jornalismo em vez de simplesmente repetir o que já se faz ou tentar resgatar o ofício. “Precisamos mostrar a jovens jornalistas que está em seu poder mudar uma organização”, diz Shazna Nessa, chefe de redação do braço interativo da Associated Press. “Aliás, a esperança de que as coisas mudem em geral é depositada sobre esses jovens”, diz.
Para quem possui essa mentalidade, o apelo de uma instituição é reduzido. Pouquíssimas empresas seguem o exemplo de John Paton, da Digital First Media, um chefe que incentiva a ruptura, espera mudanças e considera que nada está gravado em pedra.
Logo, gente talentosa como o casal Amico – e Leela Kretser, da DNAinfo, Lissa Harris, da Watershed Post,Burt Herman, da Storify, Pete Cashmore, da Mashable, e centenas de outros como eles – opta por uma trilha aberta por Nick Denton, Arianna Huffington e Josh Marshall e tenta fazer algo melhor com a criação de uma nova instituição.
Ter desejo e motivação para exercer influência pessoal sobre o jornalismo, tanto no plano da notícia como no da instituição, requer uma combinação de consciência, confiança, imaginação e habilidade.
Ainda que nem todas essas qualidades possam ser ensinadas, o fato é que não são opcionais. É importante recrutar e formar jornalistas (nas redações ou em faculdades de jornalismo) que saibam lidar com um estado permanente de mudança. Em algumas dessas instituições, que pela própria natureza representam estabilidade, será preciso considerável reajuste.
A ideia do jornalista “empreendedor” vem ganhando força e é cada vez mais estimulada tanto em cursos de jornalismo como em certos veículos de comunicação. Só que julgar a qualidade da inovação pelo lucro gerado – algo associado a essa ideia – nem sempre é útil, pois a busca do lucro deve ser precedida da criação de relevância. Seja qual for sua área de especialização, todo jornalista deve encarar a experimentação voltada à inovação como algo a praticar, e não simplesmente tolerar.
>> Redes
Todo jornalista tem – aliás, sempre teve – uma rede. Pode ser uma rede de fontes e contatos, uma rede de gente com bagagem profissional parecida, uma rede constituída de uma comunidade que o segue e o ajuda. À medida que cada integrante da rede vai ficando ainda mais conectado, um jornalista com bom trânsito por essas redes pode obter mais ajuda ou ser mais eficiente. Edição, pauta e apuração viram atividades total ou parcialmente delegadas à rede.
Criar e manter uma rede eficaz requer tato (uma “soft skill”), mas também a imposição de limites bem concretos. Exige tempo, reflexão e processo. Exige critério, até porque uma rede implica proximidade e o jornalismo exige distância. Logo, garantir ambas é difícil.
No documento “The AOL Way”, uma diretriz estratégica do portal que vazou para o público em 2011, a tese explícita da AOL era que jornalistas com redes maiores ou mais seguidores valiam mais. Embora boa parte do material tenha sido considerada pura besteira, o impacto de um exército grande e visível de seguidores na carreira de um jornalista é inegável. Quando o site Daily Beasttira um jornalista como Andrew Sullivan da revista The Atlantic, a expectativa é que seus leitores migrem também. A credibilidade, a confiabilidade e a tarimba de um jornalista já são julgadas pela composição de sua rede.
Todo indivíduo, assunto ou lugar tem o potencial de contar com uma rede visível a seu redor. Diariamente, serviços como Facebook, YouTube, Twitter, Orkut e Weibo publicammuito mais conteúdo do que a produção somada da mídia profissional no mundo todo. Logo, garimpar relacionamentos, conversas e histórias será cada vez mais importante para a coleta de informações. A ferramenta de agregação Storify e o projeto irlandês de jornalismo Storyful, que vasculha a atividade em redes sociais para buscar notícias e checar fatos, são como agências de notícias sociais: garantem mais proteção e filtro jornalístico do que as plataformas em sua base, sempre tentando imprimir algum sentido a informações dispersas e não raro confusas.
Um repórter do The Guardian, Paul Lewis, se valeu de técnicas viabilizadas por redes para produzir uma série de matérias importantes, incluindo uma na qual analisou imagens registradas por indivíduos na cena de protestos durante a reunião do G20 em Londres, em 2009. Ian Tomlinson, um manifestante que já tinha problemas de saúde, caiu ao chão e morreu durante a marcha, mas a versão da polícia sobre o incidente não soava correta para Lewis, que continuou a entrevistar gente que participara do protesto para tentar determinar a ordem dos fatos. Dias após a morte de Tomlinson, um vídeo feito por um espectador com o celular foi enviado ao The Guardian, que preconiza a “abertura” como princípio central de seu jornalismo. O vídeo mostrava, de modo irrefutável, que a polícia entrara em confronto com Tomlinson antes de sua morte. A importância da reportagem, o impulso da testemunha e as técnicas do jornalista levaram a um resultado que pode ser visto como o símbolo do accountability journalism.
>> Persona
Presença, acessibilidade e responsabilização são coisas importantes no jornalismo. E o mesmo pode ser dito da habilidade narrativa. Qualquer um de nós pode constatar, em cifras, o declínio da imprensa. Mas qualquer um de nós também pode ler um David Carr no New York Times para saber que fatores são importantes na opinião do jornalista. Aliás, queremos ler Carr porque sua prosa é um primor. Quanto mais um jornalista nos envolve com sua persona, mais queremos ouvir o que tem a dizer sobre o mundo.
Antigamente, ter uma personapública era prerrogativa de colunistas festejados. Hoje, é parte do trabalho de todo jornalista. Todo mundo – editores e repórteres, profissionais da arte, fotógrafos, “videomakers”, cientistas de dados, especialistas em mídias sociais – tem um ângulo próprio e responsabilidade na narração dos fatos. Para isso, é preciso ter critério e aplicá-lo de forma pública e reiterada. Qualquer que seja o meio de disseminação, a informação hoje é instantaneamente compartilhada, discutida, comentada, criticada e louvada – ao vivo, sem possibilidade de controle.
Integridade e critério são qualidades que um jornalista arrasta consigo como parte de sua personapública. Estão mais para valores do que para “soft skills”. Devido à natureza da busca e à publicação contínua, estabelecer um atributo desses ficou mais fácil. Mas, uma vez perdido, é difícil recuperá-lo. Plágio, desonestidade e intenções ocultas são mais difíceis de esconder; já erros factuais, material requentado e falta de civilidade podem abalar uma reputação de forma rápida e irreparável. Por outro lado, um bom jornalismo em qualquer esfera pode conquistar autoridade sem apoio institucional.
O processo pelo qual o jornalista conquista uma boa reputação – mantendo a integridade, agregando valor à informação para determinado público, demonstrando conhecimento, revelando fontes e explicando metodologias – hoje se dá em público, em tempo real. O velho modelo de proteção de fontes – na prática, um acordo de cavalheiros – já não basta. Hoje, o jornalista que quiser ter acesso a fontes sigilosas deve ser capaz de proteger a informação o suficiente para impedir que as ditas fontes sejam identificadas por ferrenhos inimigos, do poder público ou não.
Instituições jornalísticas precisam buscar um equilíbrio entre necessidades de cada jornalista e mecanismos instituídos para salvaguardar a reputação institucional. Embora tais mecanismos não impeçam, necessariamente, que o profissional construa sua reputação, a necessidade de transmitir informações de forma segura, rigorosa e coerente, dentro de prazos ou nos limites de um determinado produto, pode estar em conflito com o modo mais eficiente de trabalhar para o jornalista.
Veremos essa questão em mais detalhe no trecho dedicado a processos.
Bagagem concreta, ou hard skills
>> Conhecimento especializado
Hoje em dia, o jornalista precisa, cada vez mais, exibir um conhecimento profundo de algo além do ofício jornalístico em si. Diante da maior disponibilidade e da maior qualidade de conhecimentos e comentários de especialistas, a relativa ignorância do jornalismo profissional fica ainda mais patente. Em áreas como economia, ciência, relações internacionais e negócios, a complexidade da informação e a velocidade à qual o público deseja recebê-la, já explicada e contextualizada, deixa pouco espaço para o típico generalista.
O custo da contratação de especialistas com profundo domínio de uma determinada área significa que, cada vez mais, a cobertura jornalística especializada virá de gente para quem o jornalismo é só uma atividade a mais – como os criadores do SCOTUSblog, com seu escritório de advocacia, ou os economistas Nouriel Roubini e Brad DeLong, com seu trabalho acadêmico e de consultoria. O conhecimento pode ser geográfico, linguístico ou em certa disciplina ou área de estudo.
O valor da especialização pode estar em técnicas ou habilidades de comunicação e apresentação. Profissionais destacados – jornalistas e fotógrafos, especialistas em áudio ou vídeo, editores de mídias sociais – vão criar público para seu trabalho graças à capacidade de identificar um mercado e de se comunicar com ele.
Meg Pickard, diretora de interação digital do jornal britânico The Guardian, descreve o fenômeno da criação, pelo indivíduo, de comunidades de nicho em torno de áreas específicas do conhecimento como geração de “microfama contextualizada”. Todo jornalista precisa saber como criar comunidades de conhecimento e interesses que casem com sua especialização.
A jornalista Sara Ganin – que recebeu um Pulitzer pela reportagem sobre o abuso sexual de menores praticado por Jerry Sandusky, ex-técnico de futebol americano em uma universidade na Pensilvânia – conseguiu tal proeza devido a seu traquejo jornalístico, reforçado em muito pelo conhecimento que tinha do universo acadêmico que estava investigando.
>> Dados e estatísticas
Para que o jornalismo mantenha sua relevância, gente que trabalha na área terá de melhorar seu traquejo no uso de dados. À medida que indivíduos, empresas e governos vão criando e soltando dados em volumes cada vez maiores, vemos que disponibilidade e acessibilidade, no caso de dados, são coisas distintas. Entender a natureza daquilo que conjuntos imensos de dados oferecem, saber compor narrativas e tirar conclusões que deem sentido a informações talvez falhas ou parciais, é um trabalho importante. Assim como precisa de gente com um conhecimento maior de tecnologias da comunicação e ciência da informação, o jornalismo precisa converter cientistas de dados e estatísticos em competências centrais dentro de seu campo de atuação.
Há uma relação estreita e simbiótica entre redes de usuários, jornalistas e dados. Todo jornalista deve ser capaz de analisar dados e indicadores que acompanham seu trabalho e estar ciente de que toda cifra representa uma atividade humana. Além disso, deve ser capaz de entender feedbackse interpretá-los de forma correta, para poder melhorar o alcance e o conteúdo daquilo que produz.
Em 1979, a especialista em segurança Susan Landau estabeleceu uma distinção entre segredos e mistérios. Ao tentar entender por que a Revolução Iraniana pegara os Estados Unidos totalmente de surpresa, Landau observou que a comunidade de inteligência estava focada em segredos (buscava entender aquilo que o regime do xá Reza Pahlevi vinha ocultando), não em mistérios (aquilo que ocorria com diversos grupos fiéis ao aiatolá Ruhollah Khomeini que, embora públicos, não eram muito visíveis).
Em termos jornalísticos, a cobertura mais famosa presente na memória dos Estados Unidos – a do caso Watergate – foi baseada na descoberta de segredos. Alto funcionário do FBI, Mark Felt abriu a boca para o repórter Bob Woodward, do Washington Post –entregou informações cruciais para a cobertura que Woodward e o colega Carl Bernstein faziam do governo Richard Nixon. O peso de Watergate para a autoimagem da imprensa norte-americana tradicional segue sendo importante, ainda que muitas das grandes coberturas da última década tenham girado em torno de mistérios, não de segredos. As falcatruas da Enron e de Bernard Madoff, e a manipulação da Libor pelo banco Barclay’s, foram expostas por gente de outra área; aliás, a primeira a escrever sobre as fraudes da Enron, a repórter da Fortune Bethany McLean, não foi endeusada em parte porque aplaudi-la por ter interpretado e escarafunchado dados de caráter público significaria reconhecer que pouquíssimos membros da imprensa de negócios faziam o mesmo.
Ainda que o mundo em si tenha ficado mais complexo, o volume de dados disponíveis sobre muitos atores importantes – empresas, políticos, religiosos, criminosos – cresceu radicalmente. Um dos principais recursos para a compreensão de mistérios é a capacidade de esmiuçar dados em busca de padrões que possam estar escondidos debaixo do próprio nariz.
>> Compreensão de indicadores e públicos
Um número surpreendente de veículos de comunicação que estudamos ainda não emprega ferramentas de monitoramento em tempo real como Chartbeat ou Google Analytics – ou, o que é mais comum, não garante o acesso de todo jornalista a esses recursos. Entender como o conteúdo jornalístico é recebido, saber o que torna algo viral e poder conferir o que é lido, ouvido ou visto (e por quem) são coisas importantes para o jornalismo. E podem, embora não necessariamente, levar à manipulação do conteúdo para aumentar o número de page views ou de visitantes únicos (merece consideração a decisão do site norte-americano Gawker, cujo editor, A.J. Daulerio, fez circular um memorando deixando clara a decisão de botar o pessoal para trabalhar, em esquema de rodízio, em uma tática de geração de tráfego chamada “traffic whoring”). Identificar com franqueza alvos e metas, saber distinguir dados relevantes de irrelevantes e reagir ao retorno recebido são parte do jornalismo sustentável – e não sua ruína.
O monitoramento de tendências técnicas e de tráfego conduz a práticas mecânicas – coisas como otimização de sites (testar links e títulos distintos para garantir a melhor posição possível para um artigo em resultados de buscas no Google) – que não contribuem necessariamente para a imagem do jornalismo. Por outro lado, facilitar o acesso de um determinado público a um conteúdo jornalístico sujeito a filtros é prestar um serviço. O fato de que o público chega a notícias cada vez mais por meio de links compartilhados em redes sociais, e não por agregadores de notícias, tem implicações para repórteres e editores. A ignorância geral sobre o modo como o público consumia a informação não era um problema durante o reinado do modelo industrial. Já no mundo fragmentado e solto de hoje, saber como o público consome a informação, e se o que você escreve, grava ou fotografa chega a quem deveria chegar, é algo crucial.
>> Programação
O jornalismo tem duas grandes barreiras de linguagem a transpor. Uma é a da estatística e a da capacidade de interpretar dados. A outra é a da competência técnica – ou seja, o jornalista precisa aprender a escrever código. É verdade que ter verdadeira fluência em muitas linguagens de programação exige estudo e experiência, algo que nem todo jornalista vai poder – e nem deveria – adquirir. Mas todo jornalista precisa entender, ainda que num nível elementar, o que é um código, qual sua função e como se comunicar com gente que entende da coisa. John Keefe, chefe de uma pequena equipe de programadores na redação da rádio norte-americana WNYC, observa que a admissão a escalões cada vez mais baixos já exige um domínio básico de ferramentas e aplicativos de programação.
Um jornalista ouvido por nós, que trabalha em um ambiente mais técnico do que a maioria, apontou a falta de programadores como um entrave importante ao progresso de organizações jornalísticas. “Até na redação com mais recursos a proporção de programadores e jornalistas não passa de um para dez, o que é muito pouco. E a qualidade de muitos programadores nas redações é bem inferior à de profissionais que trabalham para empresas de tecnologia como Facebook e Twitter”, diz.
Na maioria das instituições, as altas esferas do comando dão importância a competências comerciais e editoriais, não ao domínio tecnológico. É algo que preocupa, pois vemos a crescente utilização de plataformas independentes que poderiam fornecer um excelente conjunto de ferramentas para jornalistas (para muitos, o Twitterseria a ferramenta mais útil para o jornalismo desde o surgimento do telefone), mas que não são inerentemente jornalísticas. Até para o jornalista que nunca vai escrever uma linha de código para uso diário, dominar o bê-a-bá da tecnologia é tão importante quanto entender o básico da economia.
>> Narração
Escrever, filmar, editar, gravar, entrevistar, diagramar e produzir seguem sendo a base do ofício jornalístico. Não falamos muito sobre esses dotes porque não esperamos que a capacidade elementar de saber identificar e relatar uma história relevante vá mudar, e tudo isso segue sendo fundamental para o arsenal de um jornalista. Parte da “alfabetização” tecnológica de um jornalista significa entender como cada uma das competências acima pode ser afetada por novidades no plano tecnológico ou mudanças no comportamento humano. A narrativa pode ser criada com novos recursos de agregação, o que implica a compreensão de fontes e a checagem de material diverso. Um aspecto do trabalho com redes e multidões é a capacidade jornalística de agregação.
Embora muito jornalista vá torcer o nariz para o exemplo a seguir, ao falar das fotos de “bichos decepcionados” que turbinam o tráfego de seu site, Jonah Peretti (do BuzzFeed) martela a tese de que é preciso muita habilidade para determinar o que torna um conteúdo apetecível para que outros o compartilhem. Exercícios de curadoria e agregação mais sofisticados (como o Brain Pickings, de Maria Popova) podem provar o mesmo de forma mais cerebral ao exibir ensaios sobre a natureza da beleza em vez de cães que são o focinho de líderes mundiais – embora a competência subjacente seja análoga.
Gestão de projetos
Com o surgimento de modelos mais eficazes de jornalismo a partir da reconstrução do processo existente, algo que muitos vêm observando é que o jornalista está sendo obrigado a deixar o mundo no qual toda sua atividade era focada nos assuntos que cobria. Agora, há muito mais coisas a considerar. Steve Buttry, que chefia o programa de capacitação da Digital First Media e está sempre falando de mudanças na redação em seu blog, chama isso de “capacidade de gestão de projetos”. Ele mesmo explica: é a capacidade de “estar a par de todos os aspectos do processo e de saber juntar isso tudo para produzir algo que funcione”.
Uma ideia editorial já não tem a primazia que um dia teve num produto estático como um jornal ou boletim de notícias. Agora, a ideia também precisa funcionar à luz de um grande número de variáveis, não raro com subsídios de terceiros, e de um jeito tecnologicamente viável e condizente com o que o público pede. No novo formato, uma matéria já não é uma unidade, mas sim um fluxo de atividades. Com a contínua redução dos quadros nas redações, planejar a evolução de uma cobertura, saber por que um trecho de código está sendo escrito ou imaginar qual será o resultado, objetivo ou impacto de um conteúdo jornalístico específico passa a ser importante – bem como definir parâmetros para monitorar essas metas internas. O corte de recursos nas redações, somado à intensificação da cobertura de eventos já bem cobertos – como as primárias presidenciais nos Estados Unidos ou os Jogos Olímpicos –, produz uma desproporção na cobertura e um desperdício de dinheiro em atividades redundantes.
Um tema central deste dossiê é mostrar como o jornalista terá de cultivar a capacidade de colaboração – com tecnologias, multidões e parceiros – para poder lidar com a considerável e crescente tarefa de narrar acontecimentos. Esse trabalho multidisciplinar e colaborativo deve começar pela redação (de onde deve fluir o novo conjunto de competências organizacionais). Para tanto, o jornalista precisará de mais liberdade para refletir sobre processos gerais do jornalismo e aprimorá-los.
A síndrome do hamster e Flat Earth News
O processo do jornalismo vem sofrendo uma transformação tão radical pelas mãos de forças tecnológicas e econômicas que já não há algo que possa ser descrito como “uma indústria” na qual o jornalista atuaria.
Nos Estados Unidos, já não há um plano comum de carreira, um conjunto de ferramentas e modelos de produção ou uma categoria de trabalhadores estável e previsível. Antigamente, um emprego no Washington Post pressupunha uma determinada trajetória profissional – igual a um posto na General Motors. O cargo mais baixo de redator ou repórter de uma editoria podia ser inserido numa trajetória que refletia o produto em si. O que um jornalista fazia na era industrial era definido pelo produto: um redator de títulos, um repórter, um editor, um colunista. Quando o fechamento passa a ser constante, e quando a notícia como “unidade atômica do jornalismo” é questionada, o que o jornalista faz diariamente passa a depender mais do desenrolar dos acontecimentos e do público que consome essa informação.
Tanto em montadoras de veículos como em veículos de comunicação tradicionais, há bem menos ocupações do que antes, e em geral distintas. Embora compartilhe muitas das características de atividades que sofreram uma revolução, como a fabricação de veículos, o jornalismo passou por uma mudança muito mais profunda em sua constituição. A General Motors ainda fabrica carros – que por ora ainda têm quatro rodas, um motor e um chassi. Já aquilo que o jornalismo pode ser e o produto do trabalho de um jornalista são muito mais fluidos, pela própria natureza de tecnologias da informação e distribuição.
No processo de migração do jornalismo de uma atividade que exigia um maquinário industrial e produzia um produto estático para outra na qual liberdade e recursos individuais crescem e respondem a necessidades de usuários, a dúvida é saber como cada jornalista vai influenciar o próprio processo de trabalho. As principais diferenças nesse processo são claras:
** Prazos e formatos de produção de conteúdo já não são delimitados.
** Localização no mapa perde relevância na coleta de informações e na criação e consumo do conteúdo jornalístico.
** Transmissão de dados em tempo real e atividade em redes sociais produzem informações em estado bruto.
** Feedbackem tempo real influencia matérias.
** Indivíduos ganham mais importância do que a marca.
Como todos sabemos, essas tecnologias também abalaram velhos modelos de negócios do jornalismo. As condições nesse meio levaram jornalistas a sentir impotência, e não mais influência sobre a própria vida profissional. O que Dean Starkman chama de giro incessante da “roda do hamster” (correr atrás do público transitório com a rápida publicação de matérias chamativas) e o que o jornalista britânico Nick Davies expõe no livro Flat Earth News são descrições de um mesmo fenômeno.
Reciclar comunicados de imprensa e produzir mais com menos sem nenhuma mudança fundamental em processos são, sabidamente, práticas inimigas do bom jornalismo. A nosso ver, no entanto, o jornalismo do futuro dificilmente seguirá esse modelo, pois pagar jornalistas para produzir informações de baixo valor é insustentável. Se há um espaço e um modelo de negócios para a produção às pressas de conteúdo redundante, o mais provável é que tal modelo tenha sucesso nas mãos de empresas como Demand Media ou Journatic, que se valem de algoritmos e de mão de obra barata, terceirizada.
Um jornalista que produza conteúdo de qualidade, independentemente de como é bancado, terá mais autonomia e controle sobre o próprio trabalho. E terá, a seu dispor, um público maior e mais diversificado, a custo baixo ou zero.
Nos últimos tempos, o melhor exemplo de um jornalista que soube explorar oportunidades abertas pela tecnologia fora dos processos da redação talvez seja o de Andy Carvin, da emissora norte-americana de rádio NPR. Instalado em Washington, Carvin tuitou a ritmo tão frenético sobre a Primavera Árabe em 2011 que virou o centro de uma rede para o público nos Estados Unidos e outros jornalistas que acompanhavam os fatos. Carvin não se limitou a repetir informações obtidas por outros (como um repórter gerando conteúdo sem parar a partir de material de agências); o que fez, basicamente, foi tornar público um processo de bastidores similar à intervenção de editores em uma matéria. Só que em vez de permanecer restrita a editores e jornalistas da NPR, e ao conteúdo produzido pela rádio, essa intervenção foi publicada em tempo real no Twitter. Carvin acha que foi capaz de enveredar pelo novo caminho em parte porque seu cargo oficial – diretor de estratégia em mídias sociais da rádio – não era visto como editorial em primeiro lugar.
Embora haja muitos outros casos de gente que chacoalhou velhos processos do jornalismo, é raro que os melhores expoentes dessa turma tenham tido liberdade suficiente nas respectivas instituições para desenvolver seu trabalho (como teve Andy Carvin). Burt Herman deixou a Associated Press para criar o Storify. Ory Okolloh montou a equipe que criou o Ushahidie, mais tarde, licenciou o software de mapeamento de multidões para redações; é que seu weblog, o Kenyan Pundit, não funcionou bem como plataforma para denunciar ao mundo a violência étnica que vinha ocorrendo na esteira das eleições de 2007 no Quênia.
É interessante observar que em 2012, um ano de eleições presidenciais nos Estados Unidos, vários dos jornalistas que mais geraram audiência nos veículos de comunicação mais tradicionais do país não eram das redações, mas sim gente que se projetou por rotas relativamente experimentais – e por conta própria. Nate Silver se dedicava à consultoria econômica e a montar modelos estatísticos para o beisebol. O blog de política que criou – o FiveThirtyEight.com, incorporado em 2010 ao New York Times – era tocado como um projeto de caráter basicamente anônimo, nas horas livres.
Há paralelos com a trajetória de Ezra Klein, comentarista de economia e política que criou o primeiro blog aos 19 anos e levou sua plataforma (a Ezra Klein) primeiro para o American Prospect e, depois, para o Washington Post. Nos dois casos, o risco da inovação e o laborioso processo de angariar público e achar uma posição singular no mercado ficaram a cargo de indivíduos que blogavam com software gratuito – e cujo projeto acabou sendo encampado por veículos de comunicação que, mesmo dotados de recursos maiores e de uma bela reputação, não tinham conseguido incubar esse tipo de talento.
A próxima fase da evolução verá surtos semelhantes de genialidade e empreendedorismo individuais em novas áreas – como visualização, criação de dados, partilha, agregação. As redações já não encaram blogs, Twitterou coberturas ao vivo com o mesmo receio e incompreensão do passado (e “passado”, aqui, significa cinco anos atrás).
Em cinco anos mais, receber dados em tempo real de vastas redes de sensores, criar conteúdo automatizado, adquirir ou criar tecnologias que reflitam valores jornalísticos, estabelecer parcerias com diversos especialistas e instituições e fazer experiências com agregadores, animadores e performers renomados poderia ser tão corriqueiro quanto licenciar um blog.
Como vai mudar o trabalho do jornalista?
É difícil saber exatamente como vai ser a redação mais enxuta, mas já dá para dizer que o trabalho do jornalista típico sofrerá certas mudanças ao longo dos próximos anos. Mais uma vez, essa mudança terá gradações: o papel de um editor de textos na revista The New Yorker e o processo de produção ali dentro podem mudar menos ao longo dos próximos anos do que o de um gerente de comunidade ou repórter de dados no site Nola.com.
O jornalista seguirá atuando em um ambiente de alta imersão, adaptando sua rotina de trabalho a um mundo de conversação e informação contínuas, em tempo real – o que pode causar tanto cansaço quanto dispersão. A meta final desse envolvimento contínuo, no entanto, é a produção de jornalismo de qualidade, relevância e impacto elevados. A avaliação de metas e resultados do jornalismo terá caráter rotineiro e público.
A presença de indicadores e dados, ligados tanto ao mundo externo como à própria atividade do profissional, serão parte da realidade cotidiana. Feeds de informações entregues em tempo real – um Twitterde dados – terão um papel maior em decisões editoriais e em matérias. Caberá ao jornalista definir a quem pertencem esses dados, determinar o que pode ser terceirizado para outras tecnologias comerciais e o que precisa ser mantido. Programar algoritmos, também.
Jornalistas especializados – animadores, criadores de charges interativas, redatores, “videomakers”, especialistas em análise estatística de eleições, especialistas em interação – estarão sempre buscando entender as mudanças tecnológicas em sua área e provando novas ferramentas e técnicas. A evolução do meio editorial se dará à velocidade da internet, não à velocidade de redações digitais.
Um jornalista vai dedicar mais tempo a relações de colaboração – relações que podem envolver tecnólogos (para a criação de sistemas melhores), especialistas ou acadêmicos em sua área e outros jornalistas (para a cobertura de fatos, a criação de software e a edição e agregação do trabalho de terceiros).
Embora todo jornalista já deva estar acompanhando o desdobramento de fatos e tomando parte em discussões públicas em redes sociais ou seções de comentários, sua capacidade de agregar valor para usuários com essas técnicas será, cada vez mais, parte de seu valor como profissional.
Hoje, todo jornalista pode publicar por conta própria. Uma óbvia consequência da automação da redação é a diminuição do valor e da utilidade do papel de editores. Visionários no alto das organizações seguirão dando o tom e ditando o rumo editorial de seus veículos, e talvez cada assunto venha a ter um editor especializado. O tempo poupado com a organização e a edição automatizadas de textos, no entanto, reduz drasticamente a necessidade de editores para supervisionar toda etapa do processo. Uma redação já não pode arcar com gente em altos cargos que não produza conteúdo. Todo editor devia, no mínimo, estar agregando conteúdo e dando links para material produzido ou não pela organização, fazendo uma meta-análise do processo e de fontes, dando continuidade à cobertura com o cultivo e a recomendação de fontes em público.
[Continua]
Leia também
Adaptação aos novos tempos – C.W.A, E.B. e C.S.
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C.W. Anderson, Emily Bell e Clay Shirky, do Tow Center for Digital Journalism da Universidade Columbia