Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Fotos premiadas são acusadas de inautenticidade

Na semana em que o Chicago Sun-Times demitiu todos os seus profissionais de fotojornalismo, outros acontecimentos reafirmaram a urgência de discutir e fortalecer essa atividade. A pedido de leitores, a revista da Federação Alemã de Jornalistas publicou vinte páginas de reportagem e análise a respeito de duas únicas fotos, possivelmente as mais célebres e polêmicas da atualidade.

A primeira, de autoria de Javier Manzano, foi agraciada com o Pulitzer de 2013. Na cidade de Aleppo, a cena (ver aqui) é composta por soldados rebeldes, entrincheirados num aposento escuro onde a luz do sol atravessa buracos de bala na parede. Desde a premiação, tanto o público quanto blogs especializados têm contestado a validade da imagem, que teria sido “posada” ou encenada a pedido do fotógrafo.

Feita por Paul Hansen, a segunda foto (ver aqui) mostra um cortejo fúnebre numa sombria ruela de Gaza. À frente, os corpos de duas crianças, envolvidos em plástico, mas com os rostos em evidência, são carregados por homens cuja expressão é simultaneamente de raiva e desespero. A imagem, vencedora do concorrido World Press Photo Award de 2013, tem sido alvo de desmerecimento devido a suspeitas de retoques com o Photoshop. As faces das crianças estariam “artificialmente” iluminadas, criando um contraste dramático entre a claridade do primeiro plano e a escuridão do segundo.

As fronteiras éticas

As acusações são rasas. Revelam expectativas idealizadas, nas quais a fotografia tem a obrigação reproduzir identicamente o real. Jornalistas e fotógrafos bem formados sabem que realidade, verdade e imparcialidade são mitos e, mesmo nesse limite, conseguem elaborar narrativas e interpretações adequadas ao que testemunham. Sabem, mais do que ninguém, que uma leitura coerente dos fatos é questão de medida e de sensibilidade.

Em resumo: será menos verdadeira uma foto em que rebeldes posam, reproduzindo diante da lente o que já fazem todos os dias? Será que a visão de duas crianças mortas não permanece sempre trágica, independente da luz que incide sobre elas? Falseamento ou fraude, palavras de acusação usadas pelos sites Backspin Honest Reporting e Extremtech, só fariam sentido se as crianças não estivessem mortas e se os rebeldes fossem atores. Mas infelizmente a morte brutal estava lá, em ambas as cenas.

É esse foco do sensível que a reportagem da Federação Alemã de Jornalistas conseguiu alcançar. Existem fronteiras éticas a serem respeitadas pela foto-reportagem. Porém, a tarefa mais difícil é a identificação de tais fronteiras. A cada imagem publicada deve-se refazer a pergunta: onde termina a interpretação e onde começa a manipulação? Se alguma crítica pudesse ser feita, seria aos prêmios e não às fotos. Condecorar imagens de guerra, mazela e morte é sustentar a estética do insustentável. A mesma realidade poderia ter engendrado outros retratos. Quem quer pensar nisso?

Fotografar é pensar

Não há apenas uma via para compreender a relação entre fotografia e realidade. Da estética à antropologia, existe leitura de sobra sobre essa técnica que surgiu muito antes da invenção do aparelho que a representa. Cito aqui, um pouco à margem do cânone bibliográfico, as primeiras três referências que me vieram à mente e peço ao leitor que acrescente as suas próprias:

Sarah Kofman, filósofa francesa, ensina que fotografia é ideologia. Todo ato de fotografar implica um corte, uma escolha, uma exclusão do todo em favor do detalhe. Todo ato de fotografar, deste modo, serve tanto ao fetichismo quanto à expansão informativa, pois do recorte cria um novo mundo. Assim, a primeira câmara obscura – com a ambição de apreender o real – foi a caverna de Platão, mostrando que a viagem de exposição à luz tem ida e volta.

O tcheco-brasileiro Vilém Flusser, num texto conhecido do nosso público, chama-nos para a urgência de uma filosofia da fotografia. Por quê? Porque fotografar é pensar e, assim, um modo de articular a civilização e suas imagens. Nesse caso, nada é mais certeiro do que a definição flusseriana de fotógrafo: “Pessoa que procura inserir na imagem informações não previstas pelo aparelho fotográfico.”

Na obra de Leopold Ziegler, a produção humana de imagens recebe abordagem, no mínimo, revolucionária. O filósofo alemão, esquecido e fora de moda, desmontou a ideia de originalidade. Para ele, todo original traz em si a potência da cópia. Mais ainda: a cópia existe antes mesmo do original. Com isso, não há mais matriz, tampouco realidade a ser imitada, mas apenas uma circularidade mágica. As imagens funcionam em retroalimentação e retrocriação. Todas as cenas e suas respectivas representações, antes de se consumarem, foram antes concebidas na imaginação.

Por fim, se a situação atual dos profissionais não fosse tão trágica, poderíamos julgar ridícula a atitude da empresa que reduz o fotojornalismo a um disparo digital. Tiro no escuro. A cada dia, vemos a atividade jornalística cair inteira nas mãos de leigos. E, em breve, notaremos também as consequências.

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Danielle Naves de Oliveira é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação