Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A nau dos ressentidos

O advento da internet, com suas redes sociais, blogs e sites gerou fenômenos os mais interessantes, muitos já destrinchados por especialistas. Em nossa profissão, porém, ainda não se deu a devida atenção a um personagem cada vez mais presente: o Jornalista Ressentido (vamos chamá-lo de JR). O perfil-padrão do JR pode ser assim definido: geralmente veterano, trabalhou por anos, até mesmo décadas, em grandes veículos de imprensa, sem nenhum drama de consciência ou prurido ideológico.

Com os salários recebidos, criou os filhos, pagou as contas, comprou a casa e passou boas férias no exterior. Os mais afortunados assumiram cargos de direção, com direito a cartão de crédito corporativo, automóvel funcional e secretária pessoal, entre vários benefícios marginais. Outros participaram de conselhos editoriais de seus veículos, ocupando posição privilegiada para influir na orientação do conteúdo.

Durante a ditadura militar e nos anos iniciais da redemocratização, o JR típico optou pela discrição, evitando se expor a posicionamentos que pudessem prejudicar sua carreira. Nada de militância, a não ser em favor próprio. Como o negócio da comunicação no Brasil sempre foi basicamente familiar, o JR muitas vezes mantinha bom relacionamento pessoal com donos e herdeiros, não raro socializando com eles em festas e eventos. Alguns JRs até orbitavam em torno dos proprietários, como fazem as pequenas rêmoras com os tubarões no mar azul.

Aqueles mais empreendedores, que decidiam montar o próprio veículo, não viam problema em se apoiar em caciques políticos conservadores notoriamente corruptos ou empresários picaretas. Outros tentaram praticar seu alpinismo em montanhas tucanas, de olho em boquinhas no inesgotável aparato público nacional.

Modus operandi previsível

Mas a crise que assola o modelo de negócios de comunicação desde o início do século – e que agora parece entrar em uma fase mais mortífera ainda – acaba também atingindo muitos dos Jornalistas Ressentidos, que perdem seus cargos e passam a fazer jus ao nome recebido aqui. Uma parte deles não é propriamente vítima da crise, mas se queimou diante dos empregadores por variadas razões, algumas pouco nobres. De qualquer forma, as portas das redações se fecharam.

É nesse momento que a trajetória dos JRs se entrelaça com a do Partido dos Trabalhadores. Lembrando: o PT sempre foi tratado a pão de ló pela imprensa. Remotos escândalos dos anos 1990, como o fato de Luiz Inácio Lula da Silva morar de favor na casa de um empresário que fazia negócios com prefeituras petistas, recebiam algum destaque para fenecer logo adiante. A simpatia pelo PT dentro das grandes redações, francamente majoritária, contribuía para isso.

Com a conquista do Palácio do Planalto, tudo muda: jornalistas antes considerados aliados na abertura e modernização da política, sobretudo quando divulgavam as mazelas tucanas, passam a ser tratados como inimigos, simplesmente porque não ocultavam as mazelas petistas. O viés autoritário herdado da velha esquerda stalinista se revela claramente: bom jornalismo é somente aquele a favor, imprensa questionadora faz “terrorismo informativo”.

Surge aí a oportunidade de ouro para o Jornalista Ressentido praticar a arte de cuspir no prato em que comeu, graças às facilidades proporcionadas pela internet. Sua primeira providência é abandonar o termo “imprensa” (mais nobre) para adotar o da “mídia” (até uma plaquinha de publicidade colada em mictórios públicos é “mídia”). Desde que o PT assumiu o poder federal, “mídia” virou uma espécie de senha para identificar aqueles que se colocam a favor do governo popular contra a imprensa, interessada apenas, segundo sua narrativa, em combater os defensores dos fracos e dos oprimidos.

Para o JR, os empresários com os quais circulava sem pudores passam a ser “barões da mídia”. Suas revistas, blogs ou sites ganham uma injeção de ânimo, ou melhor, de dinheiro do contribuinte. Afinal, as forças progressistas devem se unir contra o inimigo comum.

JRs que passaram suas carreiras divulgando com entusiasmo as virtudes do capitalismo agora defendem o chavismo bolivariano como a melhor opção. Publicações antes ancoradas naqueles caciques conservadores postam-se à esquerda de Che Guevara, graças a inúmeras páginas de publicidade oficial. JRs já processados pelo PT no passado agora são amigos de infância de Lula. Críticos da censura dos tempos da ditadura agora acham que a imprensa precisa de “controle social” para coibir denúncias “udenistas” sobre seus novos patronos.

Dando um toque vintage a sua obra de fancaria, JRs recorrem a um marxismo de Wikipedia para alertar aos incautos que as empresas de comunicação extraem a mais-valia de seus funcionários (uma novidade de 165 anos) e por isso não merecem respeito. E currículos online destacam logo de cara o “viés esquerdista” de seu portador. Nas palavras do grande poeta Ferreira Gullar, “antigamente ser de esquerda dava cadeia, hoje dá emprego”.

Essa fraude ideológica, digo, esse jornalismo a favor ganhou mais força com a criação da TV Brasil, a campeã em audiência nula, que consome cerca de R$ 400 milhões anuais. Generosa como o coração da mãe dos JRs, contrata programas de amigos, produtoras de amigos e até filhas e namoradas de amigos (antes que alguém se precipite: o Observatório na TV, do qual participei varias vezes desde os anos 1990, não se encaixa nessa categoria, pois existia muito antes da emissora e desempenha papel importante, como um oásis no deserto).

É a farra dos ressentidos: a cada momento surgem novos blogs mais lulistas que Rosemary Noronha, na esperança de serem recompensados pela Caixa Econômica Federal (também vale uma sinecura não relacionada diretamente ao jornalismo, seria até mais discreto). O modus operandi dos JRs é mais previsível que o resultado de uma partida entre Espanha e Taiti: insistentemente falar mal dos inimigos (Joaquim Barbosa, FHC, Álvaro Dias etc.), incondicionalmente exaltar os aliados, como se fossem copidesques do Granma. Você nem precisa mais lê-los para saber o que pensam (o que é uma vantagem, pensando bem).

Em busca do ouro

É universalmente humano sentir mágoa por demissões. É desonesto travestir essa mágoa em suposta crítica ideológica à imprensa, em busca de recompensa financeira. Trabalhei durante 23 anos na S/A O Estado de S. Paulo, sendo 8 no Jornal da Tarde e 15 no Estadão como editor de Internacional, uma das editorias mais importantes do jornal, atendendo a um alto padrão de exigência (ou não teria permanecido ali uma década e meia). Fui demitido em pleno fechamento de forma inesperada, grosseira e por motivos até hoje não claros. Pediram-me para assinar o comunicado de demissão, esvaziar as gavetas e deixar o prédio naquele momento.

Evidentemente guardo mágoas das pessoas físicas responsáveis por essa cafajestice desleal, mas estaria passando um atestado de desonestidade política e intelectual (ou de trouxa) se começasse a raivosamente malhar na internet a instituição na qual trabalhei 23 anos. Alguém poderia perguntar: ué, mas você não percebeu isso antes?

O fenômeno dos ressentidos seria simplesmente um caso para estudos psicológicos sobre desvio de caráter se não tivesse consequências institucionais mais deletérias. Não subestime os JRs: dominam a técnica da escrita e sabem construir argumentos, torcer fatos e disfarçar bobagens como grandes teses. Pesquisa da Universidade Columbia revela que 50% de todo o conteúdo veiculado online é elaborado por 1% dos usuários (e 75% elaborados por 10% de usuários), ou seja, a produção de uma ínfima minoria acaba repercutindo entre multidões de leitores passivos e desinformados em um país de baixíssimo nível político. Os profissionais da política sabem disso e usam os JRs para disseminar o ódio aos jornalistas. Seus posts são replicados por colegas e por “comentaristas” pagos nas redes sociais, martelando seus clichês num efeito viral.

Basicamente demonizam a atividade jornalística. Quem trabalha para uma organização da grande imprensa automaticamente está fazendo o jogo de golpistas. Centenas de demissões de colegas, postos na rua com filhos a criar e contas a pagar, são apenas danos colaterais a traidores na grande batalha pelas consciências. Carros de reportagem em chamas nas ruas são imagens mais ternas que os bebês do Youtube. JRs salivam de prazer a cada notícia sobre o passamento de um órgão de informação, pois isso valida seu diagnóstico sobre a falência do modelo. Sem se preocupar em oferecer alternativas viáveis para preservar e repensar um setor tão importante para a democracia, defendem o costume dos tiranos da Antiguidade: executem o mensageiro.

Muitos colegas sempre se negaram a trabalhar em grandes empresas por fazerem restrições a suas práticas e seus costumes, optando pelo jornalismo sindical, de bairro, de assessorias e, mais recentemente, de mídias sociais. Pois eles têm toda a legitimidade de fazer qualquer crítica ao modelo. Já os JRs poderiam, por exemplo, começar com uma autocrítica sobre sua “cumplicidade” anterior, em vez de fingir que não é com eles. Não há dúvida de que a imprensa brasileira está doente e necessita de cuidados intensivos (discussão que não cabe aqui), mas jamais por causa dos motivos brandidos pelos JRs, que se limitam a comprimir o travesseiro no rosto do paciente.

As atuais megamanifestações que agitam o Brasil sinalizam que a era petista pode acabar antes do que supúnhamos. A fábula de que “Lula transformou a face deste país” hoje parece um outdoor derrubado pelo vento. Mas isso não abala os JRs, já tão escolados no ofício de mudar de lado. Caso em 2014 vença a oposição, eles se deslocarão em busca do ouro mais céleres que um trem-bala.

Se vencer Aécio Neves, os JRs inundarão o mercado com biografias de Tancredo Neves, “o maior dos brasileiros desde Tiradentes, aliás, também mineiro”. Caso ganhe Eduardo Campos, a enxurrada de biografias será sobre Miguel Arraes, “o grande líder popular pernambucano que nos legou um dos mais modernos e eficientes gestores da atualidade, seu neto”. Se triunfar Marina Silva, dezenas de blogs “sonháticos” pulularão na rede, professando seu amor pelos povos da floresta e pelo sorvete de cupuaçu. E assim por diante, como diria Kurt Vonnegut Jr.

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Paulo Eduardo Nogueira é jornalista e autor de Paulo Francis – Polemista Profissional (Imprensa Oficial, 2010)