Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A violação da presunção de inocência

No dia 24 de junho de 2013, foi noticiada a ação da Polícia Militar na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, onde houve uma intensa troca de tiros com supostos traficantes do local. Na ocasião, ao menos, dez pessoas morreram, entre as quais um policial e nove civis. A ação policial foi bastante criticada por moradores da favela e por organizações não governamentais, como o Observatório de Favelas, que classificou o episódio como “massacre”.

No dia 26 de junho de 2013, às 19h41, a edição online do jornal Estado de S.Paulo publicou uma notícia sobre o ocorrido com o título “Três mortos na Maré eram inocentes”. O motivo pelo qual o jornal classificou de “inocentes” três dos mortos encontra-se nas primeiras linhas da matéria: “Pelo menos três dos dez mortos durante operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) no Complexo da Maré, após uma manifestação que terminou num arrastão contra motoristas na zona norte do Rio, na segunda-feira, 24, não tinham antecedentes criminais.”

Logo em seguida, às 20h do mesmo dia, o mesmo jornal publica uma nova matéria sobre o ocorrido, retificando a notícia anterior: “Correção: Na Maré, sete mortos tinham ficha criminal”. E, no primeiro parágrafo, explica o jornal: “A nota enviada anteriormente contém uma incorreção. Apenas dois (e não três) moradores mortos no Complexo da Maré seriam inocentes. Segue o texto corrigido.”

Separação inaceitável

O pressuposto utilizado nas matérias é o de que, entre os mortos decorrentes de ações policiais, apenas aqueles que não possuem antecedentes criminais seriam inocentes. Acontrario sensu, todos os mortos com antecedentes criminais seriam culpados.

Esse nefasto pressuposto no qual o jornal se baseia, geralmente utilizado de forma velada, foi escancarado nessa edição do Estado de S. Paulo. Como se pode inferir da leitura das notícias mencionadas, o jornal pretende com tais matérias justificar os abusos cometidos pela ação policial, eximindo de culpa a Polícia Militar do Rio de Janeiro. O propósito do jornal é evidenciado mais ainda por meio da segunda notícia, que publica uma errata com a redução do número dos mortos sem antecedentes criminais – ou, segundo o jornal, o número dos “inocentes” –, como se tais informações favorecessem a defesa dos policiais.

A existência ou não de antecedentes criminais não altera em absolutamente nada a responsabilidade dos policiais envolvidos com as mortes de civis. Sem entrar no mérito dos motivos pelos quais resultaram nesse confronto – isto é, ainda que se aceite que a PM teria apenas se defendido de supostos traficantes –, ainda sim, é absolutamente inaceitável que se faça uma separação entre “inocentes” e “culpados” com base nos antecedentes criminais. A verificação ou não do caráter abusivo dos policiais, sim, tem o condão de detectar o grau de responsabilidade dos policiais.

Objetivo inescrupuloso

A averiguação dos antecedentes criminais dos mortos em ações policiais é uma das formas mais violentas de estigmatização de pessoas que foram condenadas em ações penais, a ponto de o jornal até tentar justificar execuções sumárias. Com isso, desloca-se a responsabilidade do assassino para o assassinado.

É importante destacar que essa tentativa pífia do jornal tentar legitimar de forma irrestrita a ação policial no caso mencionado ataca frontalmente a ética jornalística. De acordo com o artigo 9o do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, “a presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade jornalística”. A propósito, esse artigo nada mais faz do que aplicar ao âmbito jornalístico o Princípio da Presunção de Inocência, previsto no artigo 5o, inciso LVII da Constituição; bem como no item 1 do artigo XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nas matérias destacadas, ou houve um enorme despreparo do jornalista; ou houve um inescrupuloso objetivo do jornal de alimentar uma ideologia autoritária. Ou ambos. E nenhuma das matérias foi assinada, o que torna ainda mais obscuras tais notícias.

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Sérgio de Brito Yanagui é advogado