O jornalista I. F. Stone levou um convidado para almoçar no National Press Club de Washington. Era um antigo juiz federal, formado em Harvard, antigo deão de uma famosa faculdade de direito e que, até recentemente, ocupara um alto cargo na Secretaria da Guerra. Stone foi informado pelo gerente do clube de que não poderiam ser atendidos: o convidado era negro. Insistiu em que, como membro do clube, tinha direito a ser servido. Nenhum garçom apareceu e saíram depois de uma hora. Stone tentou convocar uma reunião especial para discutir o assunto e mudar as regras, mas só conseguiu reunir nove assinaturas. Indignado, pediu desligamento do clube. O episódio ocorreu em 1943.
Quando, em 1981, o National Press Club quis homenageá-lo com um jantar, Stone exigiu que a direção do clube procurasse o convidado negro que fora insultado quase quatro décadas antes e o convidasse – era governador das Ilhas Virgens. Depois, insistiu em que o escritor Edward Said, palestino árabe, fosse incluído na mesa principal.
Stone tem um lugar especial na história da imprensa. É o protótipo do jornalista radical, apaixonado, engajado, pouco propenso a fazer concessões. Perseguiu uma utopia: o socialismo com liberdade. Disse que se tornara radical lendo, quando adolescente, Jack London, Herbert Spencer, Piotr Kropotkin e Karl Marx. Mas a influência principal foram, além de Marx, Thomas Jefferson e a Constituição. Intelectual ativista, conhecia história, literatura, filosofia, política, direito. Tentava dar aos fatos do dia uma perspectiva histórica, com o apoio de vasta cultura humanística. Mas procurava minuciosamente os fatos, apesar dos problemas na vista – as lentes pareciam fundo de garrafa – e no ouvido, obrigando-o a usar aparelho.
Tinha pontos de vista firmes, mas se dobrava ante a evidência dos fatos. Dizia estar preparado para aceitar verdades desconfortáveis e não tinha inibições em mudar de ponto de vista. Alfinetou todos os ocupantes do poder. Partia do princípio de que todo governo é dirigido por mentirosos. Foi um capitalista bem-sucedido e, talvez, o último dos grandes panfletários americanos. Era vaidoso, egocentrista, “prima donna”, autoritário e difícil de tratar.
Morreu em 1989. É considerado exemplo de jornalista investigativo. Foram criados com seu nome vários fundos, prêmios jornalísticos e bolsas de estudo. O interesse sobre sua figura continua atraindo biógrafos. A obra mais recente é American Radical, reeditada no ano passado. Seu autor, D. D. Guttenplan, não é acrítico mas, como os biógrafos anteriores (ver acima), ficou excessivamente fascinado pela personalidade do biografado.
Direito contra direito
Stone nasceu na Filadélfia, filho de judeus ucranianos, em 1907. Seu primeiro nome foi Isadore Feinstein, que mudaria para Isidor Stone, a conselho de um editor; ficou conhecido como I. F. Stone ou Izzy Stone. Autodidata, não chegou a formar-se pela universidade da Pennsylvania. Trabalhou como repórter em jornais locais e foi um precoce ativista político de causas radicais; ele se considerava, quando jovem, um anarcocomunista.
Ante o desemprego e a miséria da Depressão dos anos 30, ficou próximo dos movimentos de esquerda, dos sindicatos e do Partido Comunista. Foi um consciente colaborador, mas sem tornar-se membro, e considerava a União Soviética “um baluarte contra a guerra e a agressão” fascista. O pacto Molotov-Ribbentrop de não-agressão, em agosto de 1939, e a invasão e partilha da Polônia, no mês seguinte, deixaram Stone desorientado e desiludido; Stálin passou a ser o “Maquiavel de Moscou”. Quando a Finlândia foi atacada pela URSS, comparou essa ação ao ataque fascista contra a República espanhola. Desde então, deixou de ser um apologista cego da URSS, mas continuaria a desculpar, durante anos, os excessos do regime. Para ele, a ameaça fascista era mais perigosa que o comunismo; seria mais tolerante com os regimes totalitários de esquerda do que com os da direita. Criticou asperamente os EUA durante a Guerra Fria.
Depois de uma viagem à URSS nos anos 1950, escreveu: “Esta não é uma boa sociedade e não é governada por homens honestos”. Mas acrescentou que jogar toda a culpa em Stálin era obviamente inadequado; o comunista médio estava preparado para acreditar em qualquer coisa sobre qualquer pessoa que diferisse dele no mais mínimo e que, para ele, “a liquidação da oposição não era apenas um dever, mas uma prazer selvagem”. O legado do comunismo no Ocidente, disse, era de uma subserviência absoluta a Moscou. Ainda um ferrenho esquerdista, afirmou que nada acontecera na Rússia que justificasse a cooperação no exterior entre a esquerda independente e os comunistas.
Perseguindo a quimera do socialismo com liberdade, Stone depositou esperanças no regime comunista da Iugoslávia de Tito, que rompera com a URSS e seguiu um caminho independente para o socialismo, mas percebeu que se tratava, igualmente, de um regime totalitário.
Outra decepção foi o Estado de Israel. Visitou a Palestina em 1945, na época sob mandato concedido pela Sociedade das Nações em 1922 à Inglaterra, que os judeus queriam transformar em sua pátria. Stone, “um devoto judeu ateu”, disse que na Palestina “um judeu pode ser um judeu. Ponto. Sem desculpas, sem demorados argumentos sobre se os judeus são uma raça, uma religião, um mito, um acidente. Ele não precisa explicar nada, ele se sente profundamente em casa.”
Mas percebeu o perigo da insistência dos judeus em terem um Estado próprio. “Sou judeu, me enamorei da Palestina. Quero desesperadamente ajudar os judeus sem lar da Europa Central e Oriental a encontrar um lar aqui (…) Não os culpo por se recusarem a aceitar um status inferior num Estado árabe (…) Mas igualmente não culpo os árabes da Palestina por lutarem contra um status inferior num Estado judeu.” Sua solução era um Estado binacional. A proposta não agradou a nenhum dos dois lados.
Suas reportagens da Palestina dobraram a circulação do PM, o jornal vespertino de Nova York em que trabalhava. Cobrindo o julgamento dos líderes nazistas em Nuremberg, escreveu: “Meus pais nasceram na Rússia. Se não tivessem emigrado na virada do século para a América, eu poderia ter ido para as câmaras de gás”.
Em 1946, Stone participou da viagem ilegal de um navio que levou imigrantes judeus clandestinos à Palestina, burlando as cotas de imigração fixadas pelos ingleses. De novo, a circulação de PM disparou com suas reportagens. Escreveu um livro sobre a viagem, “Underground to Palestine”. Cobriu de maneira muito parcial a guerra de 1948 e a independência de Israel e esteve ao lado do primeiro-ministro David Ben-Gurion quando este assinou a Declaração do Estado de Israel, em maio de 1948. Chegou a pensar em mudar com a família para o novo país.
Durante a guerra de 1956, de Israel, Inglaterra e França contra o Egito, o sentimento tribal prevaleceu: “Porque tantos laços me ligam a Israel, estou preparado para apoiar uma guerra preventiva. Festejo quando meu lado ganha. Embora pregue a colaboração internacional e apoie a ONU, procuro para Israel a escusa de que os nacionalismos guerreiros sempre encontram escusas para romper a paz (…). É assim que sempre foi e é assim como começa, e ofereço a palha no meu próprio olho”. Também escreveu que Israel ganharia essa guerra, a próxima e a próxima. “Mas haverá guerras e guerras e guerras, até que Israel chegue a um acordo com os palestinos. O caminho para a paz está no campo de refugiados palestinos”.
Depois da vitória de Israel na guerra de 1967, insistiu em que o triunfo tornava a conciliação com os árabes mais urgente e que o futuro e a paz mundial pediam um acordo geral e final para o problema palestino e que o ponto principal estava em encontrar novos lares para os refugiados árabes, alguns dentro de Israel, outros fora, com a compensação para as terras e propriedades perdidas. Isso, disse, seria mais importante e mais permanente que qualquer vitória militar. Segundo ele, o conflito árabe-judeu era uma tragédia, a luta de direito contra direito. Foi criticado por intelectuais judeus. A respeito dos ataques palestinos contra Israel, disse que “as guerrilhas árabes estão fazendo contra nós o que nossos terroristas e sabotadores do Irgun, Stern e Haganah fizeram contra os ingleses”.
Uma duríssima reação contra ele, até o fim de sua vida, por parte de vários escritores judeus, era previsível. Foi acusado de defender a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e de pregar abertamente que todos os judeus de Israel fossem massacrados. Mas algumas sinagogas dos EUA pediram que fizesse palestras. Numa delas, disse: “Não estamos lutando contra Adolf Hitler. Somos um povo irmão lutando pela mesma terra”. Segundo seu biógrafo, os principais críticos não eram mais os direitistas, mas os judeus.
Mudança de maré
Desde que largara a universidade para ser jornalista, Stone trabalhou em publicações de esquerda. Escreveu para as revistas The Nation e The New Republic e foi repórter e editorialista de diários como New York Post e PM e de seus sucessores, New York Star e Daily Compass. Quando este jornal fechou, em 1952, ele não encontrou lugar para trabalhar. Era a época da caça às bruxas do senador Joseph McCarthy, por quem era visto como um perigoso subversivo. Estava também na mira de Herbert Hoover, o vingativo e arbitrário diretor do FBI, que o mantinha sob estreita vigilância. Todos seus passos eram seguidos, sua correspondência lida, seu lixo revirado, seu telefone grampeado. A agência sabia que livros ele lia e qual era seu prato favorito nos restaurantes. Sua ficha tinha 6 mil folhas, três vezes mais que a de Al Capone. Foi proibido de viajar ao exterior.
Com a indenização recebida do último jornal em que trabalhou e um pequeno empréstimo de um amigo, decidiu lançar seu próprio jornal, o I. F. Stone's Weekly, um semanário de quatro páginas, conteúdo radical e apresentação conservadora, sem títulos sensacionalistas. Usando o “mailing list” dos jornais em que tinha trabalhado, conseguiu 5 mil assinantes, que pagaram US$ 5 cada. Entre os primeiros estavam Albert Einstein, Eleanor Roosevelt, Bertand Russell. Ele era o publisher, repórter, redator, revisor e levava pessoalmente os exemplares ao correio. Sua mulher, Esther, administrava a empresa.
Não tinha fontes exclusivas e se recusava a participar de entrevistas “off the record”. Segundo ele, os repórteres das agências ou dos grandes jornais logo ficavam cativos do Departamento de Estado ou do Pentágono, que contam com uma legião de assessores de imprensa, cuja função é dar forma favorável à informação, e têm meios de punir o jornalista que sai da linha. “Quando o secretário de Estado convida você para almoçar e pede sua opinião, você já está no bolso”, dizia.
Preferia garimpar informações ignoradas por outros repórteres em documentos oficiais, estudos, estatísticas, em depoimentos no Congresso, na leitura de The Congressional Record e dos principais jornais. Procurava também o “detalhe significativo”, o fato negligenciado que ilumina uma situação. Usava as fontes oficiais para mostrar as contradições da linha oficial. Tentava fazer uma publicação bem escrita, com um tom pessoal e um toque de humor. Dizia que “os repórteres do 'establishment' sabem, sem dúvida, muitas coisas que não sei. Mas muito do que eles sabem não é verdade”.
Em grande parte, sua fama atual se deve ao êxito do I. F. Stone's Weekly, lançado em janeiro de 1953. Deu, persistentemente, informações que mais ninguém tinha e se tornou leitura obrigatória nas embaixadas e no corpo diplomático. É considerado o “primeiro blogueiro” da imprensa americana.
Durante a guerra do Vietnã, informou que 95% das armas usadas pelos vietcongs não tinham sido fornecidas pela China ou a União Soviética, mas eram americanas, entregues aos guerrilheiros pelas tropas do Vietnã do Sul. A fonte: dados oficiais enterrados no anexo de um documento do Departamento de Estado.
Quando os EUA negociavam com Moscou um acordo para monitorar testes nucleares, Edward Teller, o “pai da bomba de hidrogênio”, e a Comissão de Energia Atômica, contrários ao acordo, afirmavam que os testes só poderiam ser detectados dentro de um raio de 200 milhas (320 km). Stone, com base em medições oficiais, escreveu que testes foram detectados a uma distância de 2.300 milhas (3.680 km). O acordo foi assinado.
Por ocasião de um conflito naval no Golfo de Tonkin, durante a guerra do Vietnã, o presidente Lyndon Johnson, alegando que navios americanos tinham sido atacados, conseguiu do Congresso aprovação para estender as hostilidades ao Vietnã do Norte. O semanário mostrou que as provas usadas pelo governo eram falsas.
A circulação cresceu continuamente e o semanário chegou a tornar-se um excelente negócio. Com a mudança da maré política, nos anos 1960, Stone foi um herói popular para os estudantes que se opunham à guerra do Vietnã e seu prestígio cresceu para os defensores dos direitos civis e da igualdade racial.
Depois de 19 anos, cansado, ele parou a publicação de seu jornal, quando tinha 70 mil assinantes, e cedeu o “mailing list” à The New York Review of Books, para quem escreveu profusamente.
Liberdade para discordar
Livre da obrigação de editar uma publicação, voltou-se para uma antiga obsessão: pesquisar a liberdade de pensamento e de expressão através da história. Estudando a antiguidade clássica, na qual, segundo ele, começaram essas liberdades, ficou intrigado com uma questão: por que uma democracia como a ateniense, que cultuava a liberdade de palavra e em que todas as questões eram publicamente debatidas, condenou Sócrates a beber cicuta por exercer essa liberdade? Stone considerou contraditórias e insatisfatórias as explicações existentes e, não querendo depender de traduções, aprendeu grego clássico para ter acesso direto às fontes, no original. Montou uma vasta biblioteca de obras em grego, latim, inglês, alemão, francês e se dedicou a estudar a questão. (Curiosamente, a dedicação foi criticada por intelectuais judeus, para quem o helenismo era incompatível com o hebraísmo). O resultado foi uma obra, O Julgamento de Sócrates.
Segundo Stone, Sócrates era profundamente hostil à democracia ateniense. Ele pregava o poder absoluto, rejeitava o debate público e desprezava o homem comum. Seus discípulos viam a democracia ateniense com desprezo. Dois deles seguiram seus ensinamentos e ajudaram a instalar em Atenas uma ditadura sangrenta, dominada por uma oligarquia, os Trinta Tiranos, que tornou a cidade indefesa ante os ataques de sua inimiga Esparta. Quando a democracia foi restaurada, Sócrates foi julgado como inimigo do povo. Stone afirma que o próprio Sócrates manipulou o júri, para ser condenado, e que ele teve a possibilidade, que recusou, de optar pelo exílio. Precisava tornar-se um mártir mediante esse sacrifício que, de acordo com Stone, foi um crime trágico, que “deixou uma mancha perpétua na democracia”. Ainda segundo Stone, teria sido fácil livrar Sócrates da pena de morte, invocando a liberdade de expressão em que se baseava a democracia ateniense. Tanto Sócrates como Stone criticaram profundamente o país em que viveram e ambos se tornaram indesejáveis para o Estado.
Stone morreu em julho de 1989, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim e do fim do socialismo soviético, que tanto o entusiasmara quando jovem e o decepcionara ao longo da vida. Até o fim, afirmou que nenhuma sociedade pode ser sadia sem liberdade de expressão para a independência criativa e para discordar.
******
Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição