A Última Hora não chegou a ser o jornal brasileiro de maior circulação nem o de maior prestígio. Mas é, certamente, o que mais atenção vem recebendo no mundo editorial. Em torno de uma dúzia de livros já foi publicada sobre ele e nada indica que a curiosidade que suscita tenha diminuído. Esse número é muito superior ao de obras dedicadas a diários extremamente influentes em sua época, como o Jornal do Commercio e a Gazeta de Notícias, ou, mais recentemente, Correio da Manhã e Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, ou A Gazeta, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo.
O livro mais recente é O caso Última Hora, de Aloysio Castelo de Carvalho. Apesar do título, seu foco não é precisamente a Última Hora, mas a discussão das diferentes concepções de opinião pública e de liberdade de imprensa de alguns jornais do Rio, de 1951 a 1954, e a percepção que tinham do sistema político – governo, partidos políticos e sindicatos. A estrutura do livro pressupõe que o leitor tenha conhecimento prévio sobre a fundação e evolução da Última Hora e sobre seu fundador, Samuel Wainer.
A obra se concentra na campanha contra Wainer, quando foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Última Hora, em 1953, para examinar o financiamento que recebeu do Banco do Brasil. Foram examinados editoriais, artigos assinados, colunas e reportagens. A imprensa passou a questionar-se sobre si mesma, seu papel e suas relações com os poderes públicos e a sociedade.
Revolução social
O autor escolheu os pontos de vista de três diários do Rio que combatiam Wainer e seu jornal: a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, O Globo, de Roberto Marinho, e O Jornal, o órgão líder dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Como contraponto a eles, os da Última Hora. Não são explicados os motivos que o levaram a selecionar esses jornais. Certamente, foram importantes na campanha orquestrada por Lacerda contra a Última Hora. Mas o leitor pode estranhar a ausência do Correio da Manhã e do Diário de Notícias, na época talvez os jornais mais influentes do Rio, e do Diário Carioca.
O livro, que tem como origem uma tese de doutorado, não é leitura fácil. Está permeado de conceitos abstratos, aos quais o autor acrescenta digressões e citações de filósofos, que vão de Hobbes, Locke e Hume a Maquiavel, passando por Rousseau, Montesquieu, Ortega y Gasset, Adam Smith, Habermas, Tocqueville, Stuart Mill, Bobbio, Isaiah Berlin. Aparecem também autores menos conhecidos, como Koselleck. Dada a preocupação do autor com a precisão da linguagem, e com a divulgação de expressões como polissemia – “O ter uma palavra muitas significações”, segundo o Aurélio –, soa estranho o uso, como se fossem sinônimos, dos conceitos “liberal” e “conservador”, quando escreve a respeito dos jornais.
Embora com frequência a opinião da Tribuna da Imprensa, de O Globo e de O Jornal seja apresentada como se formassem um bloco homogêneo, o autor também mostra que discordavam em algumas questões essenciais. Os três queriam acabar com o concorrente Última Hora, mas, enquanto a Tribuna da Imprensa negava legitimidade ao governo de Getúlio Vargas, ele era defendido pelos jornais de Marinho e Chateaubriand. O Globo escreveu a respeito do presidente: “Suas palavras, de respeito aos poderes constituídos da República, foram as de um patriota. A demagogia, a dubiedade (…) estiveram agora completamente ausentes.” Ante a ameaça de impeachment, disse: “Getúlio Vargas é o presidente eleito do Brasil e, como tal, cabe-lhe exercer o mandato até o término do prazo para o qual foi eleito.” O Jornal, por sua vez, afirmou que Vargas, quando fez o contrário do que diziam aqueles que imaginavam que provocaria uma revolução social depois da posse, começou a tranquilizar e despertou evidente confiança.
Para atacar UH
Todos os jornais, inclusive a Última Hora, eram marcadamente anticomunistas e favoreceram a manutenção do PCB na ilegalidade; todos combatiam o peleguismo sindical. A Última Hora, que defendia a intervenção do Poder Executivo na imprensa por meio de subsídios, quando foi criada a CPI denunciou a interferência do Legislativo nos assuntos privados do jornal. O livro também mostra que, em sua defesa de Getúlio Vargas e em seu empenho em transformá-lo num mito, a Última Hora deixou de lembrar seu passado de ditador e defendia que o Poder Legislativo respondesse às demandas de um governo cujo presidente foi eleito acima dos grupos e dos partidos.
A respeito da criação da Petrobras, tanto O Globo como O Jornal se manifestaram contra o monopólio estatal. Mas, diferentemente do que diz o autor, a Tribuna da Imprensa não apenas não se opôs ao monopólio estatal como o defendeu desde o começo. No mesmo mês, dezembro de 1951, em que o governo divulgou o projeto inicial, que previa a participação do governo estrangeiro na Petrobras, o jornal escreveu que isso significava entregar “aos ‘trustes’ o controle da indústria sem risco nem despesa”. Foi o primeiro de vários artigos da Tribuna, alguns escritos por Lacerda, a favor do monopólio. Há outros deslizes, de menor importância, como a afirmação de que Jânio Quadros foi vencedor das eleições à Prefeitura de São Paulo em 1954 – ele se elegeu prefeito em 1953 e governador em 1954.
O livro mostra como O Globo, para atacar a Última Hora, transcreveu um texto de El Universal, do México, segundo o qual a luta pela liberdade de imprensa era a luta “contra o governo e os grandes grupos econômicos”. Faltou dizer que, precisamente, El Universal era sustentado pelos subsídios do governo.
“Conspiração da silêncio”
As armas mais fulminantes na campanha contra a Última Hora não foram os editoriais dos jornais – que pouca gente lê –, mas os meios audiovisuais: a TV Tupi, de Chateaubriand, e a Rádio Globo, de Marinho, usados por Lacerda com habilidade e agressividade que mobilizaram a opinião pública.
Coincidentemente, outro livro tem um título quase idêntico, Caso Última Hora, de Maikio Guimarães, que se concentra no mesmo período do jornal, os primeiros anos da década de 1950. Mas seu foco, o personagem principal do livro, ao contrário do que diz o título, não é precisamente a Última Hora, mas Carlos Lacerda. Ele diz ter percebido a superficialidade e fragilidade das críticas que lhe eram feitas e saiu em sua defesa. O autor faz a chocante afirmação de que nenhum crítico pode dizer que Lacerda tenha mentido em algum episódio, que ele foi superficialmente analisado e que suas ideias e opiniões pouco são levadas em consideração por seus detratores. Escolheu, para estudar sua pessoa, o “caso Última Hora”, basicamente o período em que o jornal e Samuel Wainer foram atacados pelo resto da imprensa e em que foi formada a CPI a respeito do financiamento à Última Hora. Assegura que os detalhes do “caso” nunca foram revelados em sua plenitude e que o episódio “ficou perdido nos desvãos da história”, mas que deve ser resgatado e discutido. É o que ele se propôs fazer.
As fontes são conhecidas, basicamente artigos de Lacerda e Wainer – o livro informa brevemente sobre a vida dos dois –, autos do inquérito da CPI, além de obras já publicadas.
O autor utiliza as fontes de maneira acrítica. Por exemplo, afirma que Wainer foi cobrir em 2 de fevereiro de 1951 a primeira reunião ministerial comandada por Getúlio Vargas e ficou surpreso ao perceber o desinteresse dos demais veículos pelo novo governo, numa “conspiração do silêncio”. Conversando com Vargas, teria saído daí a ideia de lançar um jornal para defender o presidente. A informação foi extraída da autobiografia de Wainer. O evento teria acontecido em Petrópolis.
“Sindicato da mentira”
Uma rápida pesquisa mostraria que dificilmente poderia haver uma reunião ministerial em Petrópolis em 2 de fevereiro. Vargas estava no Rio, onde foi homenageado pelas missões diplomáticas estrangeiras e pronunciou um discurso; nesse dia, almoçou com Adhemar de Barros. Também nesse dia tomaram posse do cargo os ministros da Justiça, da Educação e da Viação e o presidente do Banco do Brasil, com a presença do vice-presidente da República, Café Filho.
As conclusões do livro são que Lacerda tinha razão quanto ao financiamento da Última Hora pelo Banco do Brasil – fato sobre o qual nunca houve dúvidas – e sobre a nacionalidade de Wainer, nascido na Bessarábia. Afirma o autor que seu livro lançou luz sobre um episódio esquecido da nossa história – embora tenha sido divulgado repetidamente. Ele quis também resgatar dos seus detratores as ideias e a figura de Lacerda. É possível, diz, que, com o tempo, o papel de Lacerda seja repensado, questionado, discutido e criticado. Segundo o autor, sua própria observação, livre de preconceitos, enxergou uma figura complexa e dona de grandes gestos.
Mas Lacerda já foi enxergado como uma figura situada à extrema-direita do espectro político, um admirador de ditadores como Salazar em Portugal, sempre disposto a inventar acusações contra seus adversários, reais ou imaginários. Lacerda abriu uma campanha contra Otto Maria Carpeaux, acusando-o de “fascista”. Atacou Nelson Rodrigues como desagregador da família brasileira, pelo simples fato de escrever na Última Hora. Fez uma campanha contra “os comunistas do Itamaraty” e conseguiu a expulsão de João Cabral de Mello Neto e de Antônio Houaiss. Cláudio Abramo disse que Lacerda foi o responsável pela decadência do jornalismo político carioca, ao cunhar a expressão “sindicato da mentira” para referir-se aos jornalistas Carlos Castello Branco, Villas-Bôas Corrêa e Pompeu de Sousa.
Relações com o poder
O autor afirma que Lacerda tem sido tratado nas mais diversas publicações como o “grande vilão”, apesar de a principal obra sobre ele, escrita por John W. F. Dulles, ser uma verdadeira hagiografia. Lacerda, uma pessoa cuja extraordinária inteligência foi superada por uma ambição ainda maior, merece uma obra menos engajada.
Certamente, os livros resenhados não esgotam o enorme manancial que foi um diário inovador como a Última Hora, mas cujas relações com o poder não são um bom exemplo para a imprensa. E há também outros jornais ainda mais importantes e interessantes à espera de um autor que escreva sobre eles.
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Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo