Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Revolução ou fogo de palha?

De repente, vê-se o jargão jornalístico acrescido de uma série de esquisitices, entre as quais os inevitáveis neologismos e estrangeirismos pedantes, entronizados pelo que alguns mais apressados já chamam de revolução nos meios de comunicações, na forma do que vem sendo chamado de pós-jornalismo para pós-telespectadores. Tudo em função do fenômeno de integração e interação viral proporcionadas pelas várias redes conectadas via internet, que os estudiosos da cibercultura batizaram de realidade cíbrida, ou cibridismo, de acordo com a norma culta.

Legal, faço coro, isto se a proposta de um jornalismo mais despojado e sem a estrutura formal da grande mídia não for só fogo de palha. Sem edição, sem mediações e ingerências de fundo editorial e comercial, o novo conceito prima pela simplicidade, com o acesso franqueado a quem tenha os apetrechos básicos como smartphones e câmeras de vídeo, devidamente conectados a um sistema operacional já fartamente ilustrado em outros artigos neste mesmo OI. Na prática, porém, são evidentes as vantagens e desvantagens em relação às mídias tradicionais.

Chega a ser surreal que um modelo na verdade ainda híbrido, de operacionalidade precária, possa estar fazendo tanto barulho, a ponto de seus adeptos confrontarem não só intelectuais que eventualmente divirjam, ou questionem a decantada potencialidade das novas mídias, como a própria imprensa formal, que reluta em aceitar a ascendência deste – vá lá – novo conceito jornalístico. Sim, pois se ficou latente a importância desses novos canais de comunicação, seja no fomento como na cobertura dos manifestos que agitaram o país por um mês a fio, por outro lado soa exagerado o tom ufanista dos discursos da autointitulada mídia alternativa, ninja ou coisa que o valha.

Valorização desmedida

Começando pela complexidade de seu funcionamento, que depende de vários pré-requisitos de operacionalidade, e atribuindo ao tal streaming – o fluxo midiático em tempo real – poderes que nem sempre operam a contento, as novas mídias “pós-isto e pós-aquilo” ainda parecem longe de fazer frente aos veículos tradicionais. Quando muito, complementá-los, instigá-los, funcionar como contraponto para aprimorar seu desempenho, fazendo valer o imbatível poder de interação – e persuasão, como se viu – das redes sócias.

As mesmas redes sociais que também são cada vez mais usadas por criminosos, segundo setores de inteligência da polícia. Nada a ver, é claro, com a vocação libertária e voluntarista que inspira núcleos de vanguarda como a galera em questão, mas a tal realidade cíbrida tem dessas coisas. É ampla, geral e irrestrita, ou seja, está aí para o bem e para o mal. A sociedade desterritorializada e desespacializada, em tese repensada e depurada pelo Santo Graal do compartilhamento irrestrito sem fronteiras, proporcionado pelas redes sociais, alicerce da mídia interativa dita ninja, não está imune à promiscuidade e ao desvirtuamento da nobre função para a qual existe. Nada é perfeito, como se sabe.

Obviamente, a empolgação de tanta gente por este novo front jornalístico passa, ou começa, pela saturação dos formatos convencionais, que por mais que procurem se modernizar, ampliar os horizontes, padecem de males e limitações crônicas. Das raízes oligárquicas, interesses comerciais, editorias, práticas partidárias e viciadas, tudo é motivo para questionamento e insatisfação, ainda mais exacerbados pelas onipresentes redes sociais. Daí a busca e a valorização até desmedida das novas opções e ferramentas da era digital, ainda que, confirmando as previsões de visionários sempre lembrados, sirvam a dois senhores. Sendo que o bem aí pode ser muito mais no sentido figurado, haja vista as revelações sobre uma disseminada rede mundial de espionagem, serviço dos Estados Unidos, e com a colaboração compulsória dos gigantes da internet, of course.

Personagem documenta a própria morte

De qualquer forma, cavar espaços novos em meio a tantas limitações e dificuldades estruturais, como o sempre determinante fator econômico, não deixa de ser por si só uma façanha. Nada mais natural, portanto, que o frisson provocado pelas ações e perspectivas que se abrem em torno dessa espécie de para-jornalismo, que marca presença na linha de frente desde o inicio dos protestos no eixo Rio-São Paulo, munido apenas de unidades móveis improvisadas, além de cara e coragem para enfrentar escaramuças de desfecho imprevisível. Resta saber se ativismo e prestação de serviços, ainda que levados às últimas consequências, podem conviver em ambiente mais tranquilo e sob padrões jornalísticos mais aperfeiçoados, de mais qualidade, ou se o modelo só decola, digamos, sob pressão?

A indagação é ainda mais pertinente diante do alarde em torno de uma possível revolução na prática jornalística, o embrião do futuro jornalismo, em suma, o aventado pós-jornalismo para pós-telespectadores. Não são poucos os intelectuais e analistas que veem nessa mídia alternativa meramente uma forma de ativismo mais participativo, cuja dependência das redes sociais, mecanismos e condições operacionais às vezes bastante precários, passam a impressão de tudo é feito na base do improviso. Algo que os próprios militantes reconhecem e até se vangloriam, em cima da premissa da falta de uma estrutura formal.

Nada contra, mas, convenhamos: encarar esse tipo de abordagem como referencial, revolucionário, equivale a colocar a carroça na frente dos bois. Afinal, a cobertura in loco e presencial sempre foi e continua sendo a marca registrada do verdadeiro jornalismo, com os correspondentes de guerra, em particular, fazendo com que essa milícia ninja pareça simples brincadeira. Mesmo o diferencial do tempo real, que tanto chamou a atenção, na verdade só foi destaque por ser ainda de uso restrito, pois tecnicamente o recurso da filmagem com a câmera na mão, de efeito mais trepidante e realista, já é usado em filmes há muito tempo.

Num deles, Cloverfield, o monstro, de 2008, o personagem encarregado da filmagem documenta a própria morte. Espera-se que a tal revolução pós-televisionada não chegue a tanto.

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP