Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Um modelo de jornalista

O jornalista I. F. Stone tinha 36 anos, em 1943, quando decidiu levar um convidado para almoçar no National Press Club de Washington. Era um antigo juiz federal, formado em Harvard, que fora deão de uma famosa faculdade de direito e ocupara até pouco antes alto cargo na Secretaria da Guerra. Informado pelo gerente do clube de que não poderiam ser atendidos, porque o convidado era negro, Stone usou sua condição de membro do clube, para cobrar o direito a ser servido. Mas nenhum garçom se apresentou para atendê-los. Uma hora depois, Stone e seu convidado se retiraram. O jornalista tentou convocar uma reunião especial para discutir o assunto e mudar as regras, mas só conseguiu reunir nove assinaturas. Indignado, pediu desligamento do clube.

Trinta e sete anos depois, em 1981, quando o National Press Club quis homenageá-lo com um jantar, “Stone exigiu que a direção do clube procurasse o convidado negro que fora insultado quase quatro décadas antes e o convidasse – era governador das Ilhas Virgens. Depois, insistiu em que o escritor Edward Said, palestino árabe, fosse incluído na mesa principal”, relatou o jornalista brasileiro Matias Molina em artigo para o Valor Econômico, reproduzido na revista eletrônica Observatório da Imprensa (ver “Panfletário, crítico de todos os governos”).

Por episódios como esse, Molina lembra seus leitores que Stone “tem um lugar especial na história da imprensa. É o protótipo do jornalista radical, apaixonado, engajado, pouco propenso a fazer concessões. Perseguiu uma utopia: o socialismo com liberdade. Disse que se tornara radical lendo, quando adolescente, Jack London, Herbert Spencer, Piotr Kropotkin e Karl Marx. Mas a influência principal foram, além de Marx, Thomas Jefferson e a Constituição. Intelectual ativista, conhecia história, literatura, filosofia, política, direito. Tentava dar aos fatos do dia uma perspectiva histórica, com o apoio de vasta cultura humanística. Mas procurava minuciosamente os fatos, apesar dos problemas na vista – as lentes pareciam fundo de garrafa – e no ouvido, obrigando-o a usar aparelho”.

Quando morreu, em 1989, Stone já era considerado exemplo de jornalista investigativo. Foram criados com seu nome vários fundos, prêmios jornalísticos e bolsas de estudo. No entanto, quantos atualmente leem, conhecem ou ouviram falar de Isadore Feinstein, nome original mudado para Isidor Stone, a conselho de um editor; e consagrado como I. F. Stone ou Izzy Stone, que nasceu nos Estados Unidos em 1907, de uma família judaica?

Ditado válido

O excelente artigo de Molina pode servir de introdução à obra fascinante de Stone, principalmente a partir de 1953, quando lançou o seu I. F. Stone’s Weekly, semanário de quatro páginas, que durou até 1971, quando problemas no coração, o cansaço e a idade o levaram a encerrar sua publicação. Ela possuía então 70 mil assinantes.

Mas não a parar de escrever. Stone ainda produziu bastante para o New York Review of Books e se lançou à odisseia de escrever sobre o julgamento de Sócrates. A condenação e execução do filósofo, o segundo julgamento mais estudado da história humana, levou Stone a aprender grego clássico para ler nas fontes originais e lhe permitiu abordar o acontecimento por um ângulo novo, autenticamente jornalístico, sem nada perder em consistência.

O semanário (e depois quinzenário), que ele escrevia sozinho de ponta a ponta. “deu, persistentemente, informações que mais ninguém tinha e se tornou leitura obrigatória nas embaixadas e no corpo diplomático. É considerado o ‘primeiro blogueiro’ da imprensa americana”, observa Molina.

Artigos como o dele podem servir também de inspiração para o lançamento de parte da vasta obra de Stone jamais traduzida para o português (grande parte dela esgotada mesmo em inglês). Ainda em vida, Stone se sentiu na obrigação de dar vida mais perene aos seus textos jornalísticos, muito usados em trabalhos acadêmicos, mas pouco citados. Intelectuais se valiam das informações e análises do jornalista, mas não lhe davam o crédito devido. Só quando se consegue acesso às coleções do tosco (do ponto de vista formal) semanário é que se percebe a validade do ditado popular sobre as pérolas atiradas aos porcos. Se o original é muito melhor, por que ir atrás de cópias mal copiadas?

PS

Entusiasmado pelo artigo de Matias Molina, mandei ao Observatório o seguinte comentário:

“Excelente artigo. Infelizmente, ao que conheça, apenas o livro de Stone sobre o julgamento de Sócrates foi publicado no Brasil. O resto permanece inédito, inclusive sua história alternativa do nosso tempo, em seis volumes. A academia o ignora. Não só entre nós. Foi a atitude dominante nos Estados Unidos, embora os acadêmicos o lessem e usassem suas informações e análises, ele ainda vivo, sem citá-las e sem reconhecer o crédito. O jornalismo tem sido proscrito das bibliografias acadêmicas, mesmo quando é jornalismo de alto nível, como o de Stone.”

Fui surpreendido pela intervenção de Luiz Cláudio Cunha:

“Só um nicho de excelência e de reflexão, como o Observatório da Imprensa, poderia reunir num só espaço, num só artigo, nomes que resumem de forma exemplar o jornalismo excelente, afirmativo e corajoso. O articulista, Matías M. Molina, autor de Os melhores jornais do mundo, é uma referência de texto e de qualidade na imprensa brasileira. O personagem, I.F. Stone, é um símbolo do jornalista independente, crítico, analítico, cético e cínico diante do poder e de todos os governantes. Um judeu que criticava Israel, um norte-americano que fustigava o governo dos Estados Unidos pelas mentiras que dizia sobre a Guerra do Vietnã, um editor de um pequeno semanário de quatro páginas que antecipava notícias que ‘furavam’ gigantes como The New York Times e Le Monde. O solitário comentarista fecha o triângulo de qualidade: Lúcio Flávio Pinto, o sociólogo paraense que se transformou no mais importante jornalista da Amazônia, um exemplo de luta diante do arbítrio e da truculência da grande imprensa da região. Com seu pequeno quinzenário, o Jornal Pessoal, considerado o maior jornal alternativo do país, Lúcio Flávio foi agraciado em 2005 com o International Press Freedom pelas corajosas denúncias que faz em defesa da Amazônia e dos Direitos Humanos. Pode-se dizer que I.F. Stone foi um precursor de Lúcio Flávio lá. E que Lúcio Flávio é o herdeiro.”

Retribuí a gentileza do jornalista Luiz Cláudio:

“Como os três mosquiteiros eram quatro, me sinto no direito de completar as citações apontando-o como modelo de jornalismo investigativo, meu caro Luiz Cláudio. Você não imagina como enche de pavulagem (expressão bem nossa para o orgulho e faceirice de nós todos) com suas mais que bondosas palavras a meu respeito. Sou apenas leitor e admirador dos dois, Stone e Molina, com os quais aprendo sempre. E um orgulhoso colega de geração e de batente de você.”

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)