É possível afirmar a luta pela democratização da comunicação quando se discrimina quem pode e quem não pode trabalhar numa cobertura?
Representantes da Mídia Ninja contestaram, com toda a razão, a atitude do governo do estado do Rio de Janeiro, que há cerca de um mês os barrou na entrada do Palácio Guanabara, onde se realizava uma coletiva, porque não lhes reconhecia o status de “imprensa”. No entanto, o grupo que desde a semana passada ocupa a Câmara dos Vereadores do Rio, em protesto contra o desvirtuamento na composição da CPI dos Ônibus, age precisamente da mesma forma, ao impedir o acesso de jornalistas da chamada imprensa tradicional, autorizando apenas a entrada dos ninjas. A justificativa é de que essa imprensa distorce as informações, manipula os fatos e tem um passado que a condena: “apoiou a ditadura”.
Não se trata, agora, da hostilização às vezes extremamente violenta contra jornalistas, especialmente de redes de TV, durante as manifestações de massa que ocorreram em junho e julho. Nesses casos, sempre seria possível apontar uma indignação difusa, supostamente espontânea, de pessoas comuns revoltadas contra a atuação da grande mídia, embora seja sempre importante lembrar que palavras de ordem não surgem do nada: alguém “puxa” e o coro corresponde. Agora é diferente, porque há um pequeno grupo organizado que delibera quem pode ou não trabalhar, quando e como.
Qual liberdade?
Quando se contesta essa atitude, há quem responda que o que se deseja é a mídia livre, e que de nada adianta a presença de jornalistas se o seu trabalho será deturpado na hora da edição.
Estamos, portanto, de volta aos tempos da censura prévia, com a particularidade de que nem sequer se permite a apuração dos fatos, para que não sejam divulgados como não se deve.
Curiosamente, no famoso Roda Viva de duas semanas atrás, o líder do coletivo Fora do Eixo contestava a imparcialidade como valor para o jornalismo e defendia, em contrapartida, a “multiparcialidade”.
Seria interessante indagar como produzir essa multiplicidade de pontos de vista, se tantos são impedidos de ver.
Talvez, porém, essa “multiparcialidade” diga respeito apenas aos que são “mídia livre”: por consequência, os demais, os que “apoiaram a ditadura”, devem ser silenciados.
Faz sentido: Saint-Just, um dos ícones da política do terror que se seguiu à Revolução Francesa, dizia que não poderia haver liberdade para os inimigos da liberdade. Pouco importam as tragédias que a História acumula: sempre sobrevivem os partidários dos comitês de salvação pública e de suas guilhotinas.
Todos ou ninguém
Como já pude comentar neste Observatório (ver “Contra a demonização da imprensa“), o pressuposto que automaticamente condena tudo o que vem da grande imprensa parece expressão de aguda consciência política, quando não passa de uma brutal ignorância. Mas, em tempos turbulentos como os que estamos vivendo, radicalizar faz parte: quanto mais, melhor.
Em várias entrevistas, o líder do Mídia Ninja repetiu que discordava da hostilização aos jornalistas, que não agiria assim, mas que entendia por que os outros agiam. Na prática, portanto, não contestava esse comportamento: “entender”, nesse caso, acaba sendo sinônimo de “aceitar”, por mais que o discurso afirme outra coisa.
Diante do que ocorre na Câmara de Vereadores do Rio, se discordassem de fato dessa atitude, os ninjas poderiam simplesmente rejeitar o privilégio. Bastaria dizer: ou todos cobrem, ou ninguém. Seria uma forma objetiva e pedagógica de contestar a discriminação e de demonstrar solidariedade a quem exerce a profissão de jornalista, algo que militantes de outras épocas sabiam valorizar muito bem.
Os empresários que comandam as grandes corporações de comunicação são absolutamente refratários à democratização dos meios e sempre acusaram de “censura” qualquer tentativa de regulação nesse campo. Quem impede a imprensa de trabalhar provavelmente imagina estar agindo de maneira mais eficaz na contestação a esse poder. Opta pela ação direta, despreza a via institucional. Mas o exercício da censura em nome da liberdade, além de um absurdo lógico, significa apenas a inversão de sinais e o afastamento de qualquer hipótese de projeto democrático.
Naturalmente, todos falam em nome do povo. Mas, nesse horizonte, o que se vislumbra tem a forma oblíqua de uma lâmina pronta para decepar cabeças.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)