Minha filha, de dois anos e meio, personifica todos os seus medos numa criatura que chama de “O Monstro Púrpura”. Ele é “um pouquinho assustador”, explica ela, admitindo ao mesmo tempo que a fascina. Como monstro, é capaz de atos terríveis. Mas pode também ser um ente benigno, que transforma o ambiente dela e realiza seus caprichos.
O monstro púrpura dos americanos é Jeff Bezos. A todos ele aterroriza e fascina. Praticamente todo mundo que conheço gostaria que ele sumisse. E quase todos gostariam de poder manobrar como Jeff Bezos. Com estimados mais de US$ 25 bilhões, Bezos é uma das pessoas mais ricas do mundo; mas a esta altura os Estados Unidos já se acostumaram a vastas fortunas. Michael Bloomberg e Warren Buffett – será que é preciso ter sobrenome começando com B para ser multibilionário? – são tratados como oráculos de políticas públicas. Suas declarações frequentemente têm mais peso que as de políticos cujo cacife é de meros milhões, ou centenas de milhões. O fascínio que Bezos exerce tem pouco a ver com sua riqueza. E tudo a ver com a maneira como fez dinheiro.
Diferentemente de Bloomberg e Buffett, Bezos não enriqueceu dentro do padrão convencional de acumular capital: bancos, ou investimentos, ou compra e venda. Enriqueceu detonando o paradigma do varejo. Ele não derrotou a concorrência simplesmente vendendo a preços mais baixos. Essa prática antiquada remonta ao avô de todos os plutocratas americanos, John D. Rockefeller, que assentou as bases de sua fortuna como dono de posto de gasolina que vendia combustível mais barato que os rivais. Diferenciando-se de Rockefeller, Bezos perdeu vastas quantias como meio de expandir sua empresa e transformá-la num império que está rapidamente engolindo o território dos competidores.
Paixões peculiares
O que Bezos fez com a Amazon não foi apenas criar um modelo de negócio inteiramente diferente. Ele transformou o ambiente social em que os negócios ocorrem. Obrigou não só empresas, mas entidades sociais e formas culturais a duvidarem da viabilidade da própria presença física e se voltarem para abstrações chamadas “presenças online”. Com isso, criou duas quimeras. Uma é a ilusão de que uma transação já não é feita entre duas entidades, mas consiste simplesmente de um consumidor desejar algo e obtê-lo. A outra ilusão é a de que aquilo que se deseja pode ser obtido de graça, ou quase de graça.
A inesperada compra do jornal Washington Post por Bezos chocou alguns, embora ninguém pudesse realmente dizer por quê. Todos preferem apontar as práticas trabalhistas por vezes duras de Bezos e seu ódio aos impostos sobre a circulação de mercadorias. Essas pessoas levantam a possibilidade de Bezos usar o jornal para influenciar a política pública nessas áreas. Mas um magnata de jornal usar sua propriedade para defender interesses comerciais próprios não é novidade, nem ilegal. Os jornais de Rupert Murdoch procuram influenciar a legislação de acordo com seus interesses comerciais. E, no entanto, muitas de suas publicações – o Wall Street Journal, em particular – ainda produzem jornalismo de categoria mundial. Comparado com antigos donos de jornais como William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer, que concorreram ambos a cargos públicos e cujos jornais refletiam escancaradamente suas ambições políticas, Murdoch parece desinteressado.
As pessoas apontam então as excentricidades de Bezos e torcem nervosamente as mãos. Lembram que ele estaria gastando US$ 42 milhões para construir um relógio que será enterrado numa montanha do Texas e ficará lá por 10 mil anos. Também estaria gastando uma fortuna (assim dizem) em projetos de exploração e eventual colonização do espaço. Essas paixões peculiares deixam as pessoas muito nervosas sobre seus planos para o Washington Post, embora ninguém saiba dizer o que uma coisa tem a ver com outra. Mas pessoas são esquisitas, e as que valem US$ 25 bilhões, diferentemente do restante de nós, transformam suas esquisitices em buscas concretas.
A natureza humana
Se tudo que Bezos quer é fazer o Washington Post ir mais fundo na era digital, não me parece que isso deva preocupar ninguém. Quem acha que os jornais de hoje devem ser obrigados a escolher entre as formas impressa e online está preso aos primórdios da era digital, quando o pânico reinava. O fato – e isso ficou provado pelo New York Times e o Wall Street Journal – é que são as “marcas” impressas diferenciadas que tornam viáveis suas extensões online.
Ninguém deve estranhar mais o fato de que as assinaturas de jornais impressos estejam caindo enquanto as online crescem. As últimas são mais baratas. Mas mesmo que alguns não estejam lendo a encarnação impressa de um jornal, eles sabem que ela continua existindo. Outros simplesmente continuarão lendo jornais impressos. Sem a âncora diferencial das marcas impressas, as expansões online se misturariam num mar amorfo de informações virtuais. Acabar com jornais impressos teria efeito semelhante a eliminar as faixas brancas que dividem as estradas. Você pode não olhar para essas linhas quando dirige, mas sem elas teria menos confiança ao dirigir.
Bezos não parece muito interessado no jornalismo como profissão ou serviço público. O que parece que ele quer com o Post é o que tem procurado fazer com todas as suas empresas. Quer mudar a natureza humana.
Colonizar tempo e espaço
Minha previsão é que Bezos vá abolir, mais cedo do que tarde, o jornal impresso simplesmente para acelerar seu projeto de tornar online toda a vida social e cultural. Seu desejo de colonizar o espaço é, na verdade, a expressão de seu desejo muito mundano de colonizar o espaço virtual. Uma vez dissolvidos os limites físicos do comprar e vender, compras e vendas poderão habitar os reinos privados, íntimos, improváveis da vida humana onde um dia não se encaixavam ou eram proibidos. Talvez seja esse o significado do relógio enterrado na montanha por 10 mil anos. Ele transforma o tempo numa mercadoria. Tudo que se precisará fazer é desenterrá-la, comprá-la e revendê-la.
Se Bezos abolisse a versão impressa do Washington Post, poderia estar matando o Post. A versão online, porém, continuaria viva, perdendo dinheiro como a divisão de venda de livros da Amazon.com. Mas não é dinheiro que interessa a esse homem de US$ 25 bilhões. Seu objetivo é mudar a maneira como vivemos. E se a forma física do Washington Post deixar de existir, as versões impressas de outros jornais também estarão em perigo, ameaçadas pela simples força gravitacional da “inovação”. Eles também terão de se tornar totalmente online porque acionistas assustados e perplexos exigirão que o façam. E então, mais e mais porções da cultura serão tragadas pelo crescente reino virtual de Bezos.
A realidade fundamental é que Jeff Bezos é agora um dono de jornal que está mais preocupado em colonizar tempo e espaço do que em influenciar a opinião pública ou ganhar dinheiro. Isso não é pouco assustador.
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Lee Siegel, para o Estado de S.Paulo