Há momentos na História em que algumas mudanças são marcadas por acontecimentos ou eventos que tornam visíveis, de forma bastante clara, as características e a profundidade das transformações em movimento. Foi assim na tomada da Bastilha, na queda do Muro de Berlim, na imagem das torres gêmeas em chamas. Nesses exatos momentos é como se víssemos a História virar uma página. Mais do que simples alteração política, tais transformações paradigmáticas são as imagens de uma mudança maior, relativa à nossa forma de ver o mundo. Imagens que introduzem um novo tipo de olhar, substituindo a perspectiva anterior.
Na história da comunicação e da democracia brasileiras, as imagens das manifestações surgidas das redes digitais e que em junho ocuparam as ruas serão lembradas como evento paradigmático: a expressão do momento no qual terminou o monopólio midiático da informação. No futuro, os manuais de teoria da comunicação e de ciências sociais vão se referir a junho de 2013 como o importante momento em que as grandes empresas de mídia deixaram de pautar a agenda do debate público do país. E quando a mídia de massa e sua lógica centralizadora foram superadas pelas redes digitais, pela cultura colaborativa e sua lógica descentralizada.
A mudança de tom e de conteúdo na cobertura das manifestações realizada pela grande mídia, depois dos primeiros dias, mostrou claramente as relações de força entre o velho e o novo neste momento. A difusão nas redes de uma grande quantidade de imagens captadas e divulgadas por qualquer indivíduo através de telefones celulares multiplicou os pontos de vista e as perspectivas, inviabilizando a permanência de um único ponto de vista central.
Construção colaborativa de conteúdo
Claro, as transformações não caem do céu, não são raios repentinos. Elas têm uma natureza midiática que vem acontecendo há décadas. Em nosso Centro de Pesquisa Atopos, da ECA-USP, onde estudamos as redes digitais a partir de uma perspectiva transdisciplinar, acompanhamos essa lenta e gradual transformação, pesquisando como, nos diversos cantos do Brasil e em cada tipo de “periferia”, o advento das tecnologias digitais implementou não apenas novas práticas comunicativas, mas uma nova cultura social, um novo tipo de protagonismo e de cidadania. Isso vai desde as produções digitais das comunidades indígenas, que passaram a registrar suas culturas e a expressar sua visão de mundo e reivindicações nas redes, aos jovens das periferias metropolitanas que contribuíram para o processo de pluralização cultural e de multiplicação de pontos de vista. Passando também pelas formas mais avançadas das experiências do Baixo Centro e dos movimentos públicos e apartidários contra a corrupção e pela gestão transparente dos recursos públicos.
Esse processo descentralizado criado pelas tecnologias digitais foi se expandindo até transbordar nas ruas em junho. Ponta de iceberg e, portanto, parte visível de um processo mais amplo que contrapõe dois modelos de comunicação que o cientista social John D. Peters identifica nas diversas formas de distribuição de informação propostas pelas narrativas das grandes religiões monoteísticas (baseadas num modelo disseminador de um para muitos) e no modelo dos diálogos socráticos (baseado, ao contrário, numa dinâmica relacional, num tipo de ecossistema comunicativo no qual a comunicação acontece somente através da colaboração e da contínua interação entre diversos atores).
Nesse segundo modelo não há mais a predominância da disseminação de informação de um centro para os públicos em volta. Há, sim, a construção colaborativa de narrativas e conteúdos feitos por muitos atores e resultantes em uma pluralidade de pontos de vista. É essa distinção tecnocomunicativa que diferencia e separa as grandes empresas midiáticas da Mídia Ninja e das demais formas de produção e distribuição de informações em redes. As empresas midiáticas tradicionais, formadas e desenvolvidas com base no modelo analógico, disseminam informações por meio de fluxos informativos unidirecionais. Já as mídias em redes como a Mídia Ninja atuam através de uma forma comunicativa de construção colaborativa de conteúdo.
Processo de transformação
A passagem de um modelo para o outro, que se tornou visível em junho, não foi instituída por um decreto ou lei, de cima para baixo. Foi o resultado do advento das tecnologias digitais que, através da disseminação de tecnologias e dispositivos que se tornaram de uso comum pelo consumo e pelo livre mercado, chegaram a todos os setores da população, permitindo a produção e a multiplicação dos fluxos informativos.
O modelo comunicativo em rede é também portador de um novo tipo de empreendedorismo, expressão de um mercado tendencialmente mais plural no qual diversos atores compartilham conhecimento e tecnologia para a inovação e a realização de seus objetivos. Enfim, estamos diante de um fértil processo de transformação que agrega, num novo tipo de sociedade, tecnologias, informações e seres humanos.
O jornal americano The Washington Post, que foi fundado em 1877 e revelou o escândalo Watergate na década de 1970, foi comprado segunda-feira pelo presidente da Amazon, Jeff Bezos, por US$ 250 milhões, em seu primeiro grande investimento fora do meio digital.
******
Massimo Di Felice é sociólogo, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenador do Centro de Pesquisa Atopos (ECA/USP)