Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Problemas anunciados

Em dois sábados seguidos (17 e 24/8), a Folha de S. Paulo ocupou com anúncios mais de 60% das páginas do primeiro caderno. No primeiro caso, de 20 páginas, foram dedicadas a publicidade 12 páginas internas e um rodapé na capa. Uma semana depois, das 28 páginas do caderno, 17 mais um rodapé na capa eram anúncios.

Quem torce pela melhoria dos jornais poderia hipoteticamente comemorar esses resultados: anúncios são um ingrediente indispensável da liberdade de imprensa no regime capitalista (nenhum regime socialista concedeu até hoje liberdade de imprensa a seus cidadãos) e podem, no melhor dos mundos, garantir recursos para mais e melhores reportagens, edições mais caprichadas e até mesmo (como seria bom…) menos erros elementares de português.

Infelizmente, nem na Folha, nem no Estado de S. Paulo, cujo regime alimentar é semelhante,essa cândida visão se sustenta. Acontece que os anúncios predominantes num sábado são de empreendimentos imobiliários. No exemplo examinado, temos os seguintes dados:

>> Em 17/8, anúncios de imóveis constituíam 60,9% do espaço de anúncios (mais 15% a cargo da indústria automobilística);

>> Em 24/8, 72,2% (mais 13,3% de carros).

Papel pintado

Esses anúncios de página inteira (papel pintado) são vendidos a preços tão camaradas que, segundo cálculo recente de uma fonte familiarizada com o assunto, não sobram para os jornais, descontados o papel, a tinta e o custo da distribuição, mais do que alguns poucos milhares de reais (contáveis nos dedos de uma das mãos).

Jornais são meios de comunicação eminentemente urbanos – mais propriamente, no Brasil, com sua precária infraestrutura de transportes, meios metropolitanos. Mas, para sobreviver (ou imaginar que sobrevivem, no caso de alguns dos recursos de que se valem), publicam predominantemente anúncios de indústrias que, no contexto atual, funcionam como inimigas da qualidade de vida nas cidades. Inimigas, portanto, dos interesses de seus leitores.

Carros e prédios, aliás em estreita associação, criam alguns dos mais graves problemas das cidades: engarrafamentos, poluição ambiental e sonora, altos índices de mortes por atropelamento ou em acidentes, enchentes – todos fartamente presentes no noticiário desses mesmos jornais.

Individualmente, nenhum anunciante poderia ser responsabilizado pelos efeitos daninhos atribuíveis à categoria a que pertence. Por conseguinte, de nenhum jornal se diria ser “culpado” por abrigar esse ou aquele anúncio específico.

O que chama a atenção é a armadilha social – e (des) humana – na qual estão imersos todos os stakeholders do enredo, leitores incluídos.

Essa armadilha é criada pelo imaginário coletivo, poderosamente influenciado pela mídia jornalística. Morar em prédios altos situados em quadras contíguas não é uma determinação da natureza nem da vida em sociedade. Circular em automóveis de 800 quilos que transportam indivíduos de 80 quilos não é um mandamento celestial. Trata-se de práticas sociais desenvolvidas a partir de concepções sobre o morar e o transportar-se que, no capitalismo, se tornaram hegemônicas.

Infelicidade coletiva

Essas concepções não foram urdidas por conspiradores contra a humanidade, apenas se construíram submetidas a lógicas de sobrevivência dos indivíduos, das famílias, das empresas, de governos no sistema capitalista (expressão que generaliza e simplifica, mas capta o sentido geral do processo).

Jornais, leitores, empresas e governos ainda não conseguiram tirar todas as conclusões decorrentes da constatação de que a cidade brasileira atual é uma gambiarra gigantesca onde se concentram, em doses cavalares, fatores que tornam os indivíduos desnorteados, agressivos e infelizes.

Nas jornadas de junho, que a mídia jornalística foi incapaz de pressentir e de cobrir adequadamente, tiveram papel relevante doses maciças de felicidade coletiva que funcionaram como avesso libertário de um estado continuado de infelicidade coletiva.

Mortos vilipendiados

A ombudsman da Folha de S. Paulo, Suzana Singer, reuniu em sua coluna de domingo (25/8) três casos de desrespeito jornalístico a pessoas mortas e suas famílias (ver aqui). A crítica é indispensável, ainda que desrespeitar mortos e vivos seja uma das práticas prediletas da imprensa.

Nos três casos, a fonte das aleivosias foi a polícia. Outra constatação nada surpreendente. A polícia é fonte de quase tudo que se publica ou propaga a respeito da esfera criminal e essa é uma das maneiras que encontrou para que suas próprias práticas criminosas sejam poupadas de apuração jornalística. A polícia é fonte e nenhum jornalista costuma questionar práticas e versões de suas fontes.

Enfim, como dizia o saudoso João Rath, nada mais parecido com um policial do que um jornalista, e vice-versa.

Sonhemos com uma situação em que uma das famílias sobreviventes decida processar o órgão difamatório mais conspícuo (no caso da família Pesseghini, de pai e mãe policiais militares, o troféu hors concours vai para a Veja São Paulo, que não se pejou de colocar na capa a foto do menino dado como assassino-suicida).

Sonhemos mais: que, depois de pagar uma multa, o jornal, revista ou emissora de rádio ou TV decida processar a autoridade que lhe forneceu informação não qualificada. Bastaria o processo para (re)colocar em discussão o tema, que esteve no cerne do caso da Escola Base. Seria salutar.

Errei

No tópico “De pai para filho“, tasquei o sarrafo no O Globo injustamente. A reportagem, ao contrário do que eu sugeri, não defendia o cumprimento do regimento interno da Câmara Municipal carioca contra a liberdade de manifestação, mas, ao contrário, dizia que o regimento foi feito sob a ditadura e contém restrições antidemocráticas.

Enganei-me porque li o texto a toque de caixa, na diagonal, e entendi o contrário do que estava escrito.