Vendido “The Washington Post” a Jeff Bezos, o fundador da Amazon, as atenções se voltam para “The New York Times”: qual é seu futuro?
Representantes da família Ochs/Sulzberger, que controla o jornal desde o fim do século XIX, sentiram-se na obrigação de sair de encontro a rumores e especulações sobre uma eventual venda – as ações da empresa subiram 2,5% com o anúncio da compra do “Post”, indício de expectativas de que o jornal fosse colocado no mercado. Eles negaram, de maneira enfática, a intenção de vender e asseguraram que a família permanece unida nesse compromisso. As ações caíram de novo. Na semana anterior, o presidente do conselho de administração da empresa e “publisher”do jornal, Arthur Sulzberger Jr., ante o boato de que o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, poderia comprar o jornal, afirmou, batendo com a mão na mesa: “O ‘Times’ não está à venda!”
Mas será que declarações com boas intenções são suficientes? O “Times” é hoje o último grande diário americano de controle familiar. A questão não é se a família quer vender, mas se realmente terá condições de evitar o mesmo destino de outras publicações familiares. Inicialmente, seus controladores também não queriam vender, mas, um a um, quase todos os diários de prestígio dos Estados Unidos mudaram de dono.
“The Wall Street Journal”, nas mãos da família Bancroft durante mais de um século, foi comprado por Rupert Murdoch; “Los Angeles Times” foi vendido pelos Chandler; o “Chicago Tribune”, dos McCormick, já trocou várias vezes de mãos; o “Des Moines Register” passou da família Gardner à cadeia Gannett; o “Times” comprou “The Boston Globe” da família Taylor; os Pulitzer venderam o “St. Louis Post-Dispatch”; o “San Francisco Chronicle” saiu da família de Young para o grupo Hearst. É uma longa lista.
Até recentemente, a venda seguia um roteiro conhecido. Vários herdeiros queriam manter o jornal dentro do controle familiar, mas a maioria, que dava mais importância aos dividendos do que aos valores e princípios dos fundadores, não resistiu às generosas ofertas feitas pelos grandes grupos de comunicação. Hoje, o panorama é diferente. Jornais tradicionais que não conseguiram se adaptar ao novo paradigma da internet estão sendo vendidos, relutantemente, por seus donos, a pessoas de grande fortuna dispostas a arriscar seu dinheiro para mantê-los em circulação.
É o que aconteceu com “The Boston Globe” e “The Washington Post”. E o que certamente deverá acontecer com “Los Angeles Times”, que tem uma razoável fila de eventuais compradores, e com “The Chicago Tribune” num futuro próximo. A empresa, Tribune Co., quer ficar com as emissoras de rádio, TV e cabo e vender os jornais.
Anúncios e entretenimento
“The New York Times” deveria, pela lógica, ser a bola da vez. A circulação do jornal impresso, a receita de publicidade e o faturamento total vêm caindo ano após ano e trimestre após trimestre. A avassaladora irrupção da internet foi certamente a principal causa desses problemas, mas o “Times” cometeu uma espantosa série de erros, que lhe custou bilhões de dólares e o enfraqueceu economicamente. Comprou “The Boston Globe”, o site About.com, de consumo pessoal, construiu uma nova sede de 52 andares –, um “vanity project”, o terceiro edifício mais alto de Nova York, projetado pelo arquiteto Renzo Piano, que desenhara o Centro Georges Pompidou, em Paris –, distribuiu generosamente opções de ações aos empregados. Pior ainda, gastou US$ 2,7 bilhões, entre 1998 e 2004, recomprando ações da empresa no mercado numa frustrada tentativa de valorizá-las.
Em 2008, a situação era assustadora. A receita de US$ 2,95 bilhões era a menor em dez anos, as perdas chegaram a US$ 57,8 milhões, a dívida subia a US$ 1,1 bilhão, grande parte com vencimento em poucos meses. As ações quase foram classificadas como “lixo” (“junk”).
Para enfrentar a sangria, a empresa se desfez de ativos. Vendeu várias emissoras de televisão e estações de rádio, uma cadeia de jornais regionais, diversas revistas e 50% do Discovery Channel. O prédio velho foi vendido por US$ 175 milhões; o prédio novo, que custara US$ 600 milhões e do qual a empresa tinha 58% do espaço, foi negociado e arrendado numa operação de “sale and lease-back”, com direito de recompra. Vendeu por US$ 300 milhões o site About.com, pelo qual pagara US$ 410 milhões; o site de empregos Indeed.com e uma importante participação no time de basebol Boston Red Sox. As ações, que em 2004 valiam US$ 49,18, caíram em 2009 para US$ 4,26.
Numa operação que causou surpresa e apreensão, o empresário mexicano Carlos Slim comprou 109 milhões de ações, 6,4% do total, por US$ 127 milhões. Além disso, num acordo considerado “punitivo” pelo próprio jornal, Slim adquiriu papéis de dívida da empresa, conversíveis em ações, no valor de US$ 250 milhões, que rendiam juros anuais de 14,053%. Em 2009, o “Times” teve que cortar os dividendos.
“EndTimes?”, um livro publicado no ano passado, tenta refletir sobre a situação e perspectivas do “Times”, sua precária condição financeira, sua importância, evolução e seu papel como o principal órgão de informação e análise do país.
A obra reflete a fascinação que “The New York Times” ainda exerce. O autor, Daniel Schwarz, professor de literatura inglesa da Universidade de Cornell, não esconde sua paixão. É leitor do jornal desde que aprendeu a ler e ficou viciado nele, mantém com o “Times” um longo caso de amor que deixou uma marca em seu coração e em seu cérebro, e diz que aprendeu nele mais coisas do que em qualquer outro lugar. Mas, como todo amante apaixonado, Schwarz revela sua profunda frustração quando o objeto de sua admiração não alcança os elevados padrões que dele espera. Mostra neste livro, que demorou sete anos em escrever, por que ama e por que se desespera com o “Times”, suas expectativas e temores por seu futuro.
No passado, diz, o jornal se mostrava mais preocupado em reproduzir com precisão enfadonhos relatos do governo do que em contestar esses relatos. Era uma atitude, depois da Segunda Guerra Mundial, derivada do idealismo, ausência de cinismo e moralismo de seus dirigentes, e de sua reverência pelo país. Uma luta do bem contra o mal, e o jornal achava que os objetivos pessoais deveriam ser subordinados à cruzada pela América. As altas fontes do governo estavam abertas. Era uma época de abundância, em que o jornal contratava três repórteres para fazer o trabalho de um. Foi também um período de expansão, com o lançamento de uma edição na Costa Leste e outra na Europa, mas negligenciando a cobertura de Nova York, que ficou com os tabloides “New York Daily News” e “New York Post”.
A partir dos anos 1970, o “Times” passou a preocupar-se mais com os leitores do que com as fontes. Mostrava o contraste entre o que o presidente dizia e o que o presidente fazia. Considerava que suas informações e análises eram relevantes para o país e para o mundo e importantes para a democracia. E achava importante que os leitores acreditassem no que liam em suas colunas. As notícias econômicas passaram a ser escritas para o leitor comum, mas com a preocupação de interessar também a Wall Street.
Schwarz afirma que o “Times” ficou menos obcecado com Manhattan e mais aberto ao que acontece em outras áreas da cidade e do país. Tornou-se um jornal de circulação nacional, mas com base cultural em Nova York; começou a dar mais atenção aos valores conservadores e a olhar questões políticas, religiosas e culturais a partir de diversas perspectivas, mas com cuidado, para não perder suas raízes. Passou também a dar menos ênfase às notícias, para ressaltar a análise e o jornalismo investigativo.
E errou de maneira monumental em alguns casos. O livro menciona os estragos na imagem provocados pelas dezenas de reportagens imaginárias do repórter Jayson Blair. Mas o que levou Schwarz ao desespero foi a cobertura acrítica da repórter Judith Miller sobre o Iraque, baseada em fontes governamentais e que foi importante para a criação de um clima favorável à invasão do país. Judith repetiu, com base em fontes que se revelariam nada idôneas, que o Iraque tinha um enorme arsenal de armas químicas e nucleares. Nenhum editor questionou quais eram essas fontes. O jornal queria combater a pecha de ser excessivamente liberal. Judith, para desfazer sua imagem, extremamente negativa, tentou apresentar-se como mártir pela liberdade de imprensa numa ação que custou ao jornal, com as finanças já combalidas, vários milhões de dólares. Esses desastres levariam o “Times” a pedir desculpas publicamente e a criar a figura do “public editor” – um ombudsman externo – e de um “standards editor”, cuja função é cuidar da ética jornalística e olhar se há conflitos de interesses nas notícias, se as informações seguem os padrões de qualidade do jornal – e se as retificações dos erros são publicadas.
Schwarz critica que, para atrair novos leitores, o “Times” passou a competir com os tabloides, publicando mais notícias de esportes e eventos da cidade, dando atenção a temas como crimes, sexo e celebridades, com uma abundância de detalhes que antes assustaria os leitores tradicionais, e praticando ocasionalmente o jornalismo amarelo. Como exemplo, menciona que um artigo banal sobre um filme pornográfico foi publicado na primeira página. O “Times” deu também destaque à cultura popular.
Schwarz diz que o jornal tenta agradar a todas as audiências, quer ser tudo para todos, o que é um ato de frivolidade que compromete seus padrões. Afirma também que o jornal é prolixo e que algumas informações ocupam espaço excessivo – certamente a maioria dos leitores concorda.
O autor reclama que países como o Brasil e a Argentina são cobertos de maneira intermitente e lamenta o que considera a vulgarização da edição de domingo, com um grande número de cadernos e suplementos cujo objetivo é proporcionar entretenimento e atrair anúncios; até à “Book Review”, assegura, falta “gravitas” intelectual.
Valor de mercado
Em 1962, Clifton Daniel, que ocupava um alto cargo na redação do jornal, disse que nenhuma mulher seria jamais editora do “Times”. Schwarz, por sua vez, escreveu que tinha suas dúvidas de que Jill Abramson, que fora chefe da sucursal em Washington e era editora de notícias, fosse escolhida para suceder a Bill Keller, o editor-chefe. Pois bem, num feliz desmentido tanto a Daniel como a Schwarz, ela ocupa o lugar de Keller desde setembro de 2011.
Schwarz acompanha a tentativa do “Times” de reinventar a si mesmo na internet e de encontrar seu lugar no mundo digital. Foi um período em que o jornal deu o conteúdo de graça na rede, depois cobrou por algumas matérias e voltou a permitir o acesso livre. O livro terminou de ser escrito em 2011, pouco depois de o jornal adotar o modelo “poroso” de cobrança, pelo qual permite o livre acesso a um pequeno número de matérias e cobra dos leitores mais assíduos. O autor não teve tempo de incluir o resultado no livro.
Ele escreveu que “o ‘Times’ está e tem estado nos últimos anos em sérias dificuldades financeiras e luta pela sobrevivência, devido à queda da publicidade, aumento dos custos e desafios digitais”.
Schwarz levanta a possibilidade de que o jornal pudesse ser vendido a Warren Buffett, Michael Bloomberg ou, numa hipótese que hoje soa chocantemente fora da realidade, a “The Washington Post”. Mas não acreditava que isso acontecesse enquanto “Punch” Sulzberger, pai do atual “publisher”, estivesse vivo – ele morreu em setembro do ano passado.
Na verdade, não foi necessário vender o “Times” para melhorar sua saúde financeira. A decisão de cobrar pelo conteúdo atraiu um inesperado número de leitores dispostos a pagar para ler com frequência o jornal na internet; apesar dessa barreira, se manteve como o jornal dos Estados Unidos com maior número de acessos.
Em 2012, a empresa teve resultados acima das expectativas, com faturamento de US$ 2 bilhões, bem abaixo do pico do passado, mas com um lucro operacional de US$ 108 milhões. Pela primeira vez na história, a receita de assinaturas, digitais e em papel, de US$ 953 milhões, superava a da publicidade, de US$ 898 milhões. Tradicionalmente, a receita do “Times” era 20% da venda do jornal e 80% dos anúncios. A liquidez permitiu à empresa resgatar títulos da dívida que venciam em 2015. Prudentemente, manteve a política de não distribuir dividendos, para reforçar o caixa. Em junho, o número de assinaturas digitais era de 738 mil, cerca de 40% acima do mesmo período do ano passado. A liquidez era excelente: a empresa tinha disponíveis US$ 918 milhões para uma dívida de US$ 694 milhões e, como disseram seus dirigentes, conta com um bom fluxo de caixa positivo. Com a venda da maioria dos ativos, a empresa, que conserva ainda uma participação de 49% numa fábrica de papel no Canadá, concentra sua atenção e recursos no “Times” e no “International Herald Tribune”, editado em Paris.
E, ao contrário das incertezas de Donald Graham, que ao vender o “Post” disse que “o negócio dos jornais continua a colocar questões para as quais não tínhamos respostas”, o “Times” tem uma estratégia para o futuro: pretende consolidar-se como um jornal de alcance global e desenvolver a edição digital. “O ‘Times’ tem as ideias e o dinheiro para apostar na inovação”, segundo seus dirigentes, com vários projetos em gestação. Uma iniciativa é mudar o nome do jornal “International Herald Tribune” para “International New York Times”, a partir de meados de outubro, e desenvolver um novo site, para aumentar a audiência no exterior. Na área digital, está desenvolvendo novos produtos de acesso pago; desde junho, por exemplo, cobra pelo acesso aos usuários de aplicativos móveis que leem mais de três matérias por dia.
Mas o futuro do “Times” não está assegurado. A receita de publicidade continua caindo e o aumento das vendas de assinaturas ainda não compensa essa queda. Isso significa que a receita total da empresa encolhe continuamente; até agora, esse declínio foi compensado com o corte de despesas, mas, como disse Donald Graham antes de vender o “Post”, há um limite para os cortes num jornal de qualidade. Além disso, o ritmo de crescimento das assinaturas digitais, ainda elevado, vem diminuindo. E a empresa não tem mais ativos para colocar à venda.
Até agora, os Ochs/Sulzberger têm sido solidários no propósito de manter o jornal dentro da família, mas a suspensão do pagamento de dividendos, decidida em 2009 e renovada este ano, poderá incomodar alguns herdeiros. Pela estrutura societária, as ações da família não pertencem diretamente a seus membros. Foram colocadas, há várias décadas, num “trust” – espécie de fundação. O objetivo foi garantir a continuidade da orientação de não ter o lucro como objetivo principal, mas prestar uma espécie de serviço público à sociedade. Seria, por exemplo, muito fácil aumentar rapidamente os lucros cortando uma boa parte dos 1.100 empregados na redação e das 25 sucursais no exterior, mas com sacrifício da qualidade.
As ações do “trust” têm direitos de voto muito superiores às dos investidores comuns, garantindo, assim, o controle da empresa. O número de ações especiais em poder do “trust” caiu de 19% do total, em 2010, para 13% no início deste ano, sintoma de que vários herdeiros preferiram vender parte das quotas.
Num recente artigo publicado no próprio “Times”, James B. Stewart escreveu que, com um valor de mercado de apenas US$ 1,79 bilhão, o jornal é um anão entre gigantes como Bloomberg, Facebook, Amazon e Google, seus competidores na procura de audiência e publicidade.
O mais influente
O que falta ao “Times”, em relação a essas grandes empresas, são os enormes recursos necessários para destrinchar, analisar as informações sobre seus clientes armazenadas em seu banco de dados e prepará-las para atrair os anunciantes digitais. Por esse motivo, o “Times” seria muito atraente para o Google, segundo Scott Hemphill, professor da Universidade Columbia, citado por Stewart no “Times”. Outros parceiros potenciais poderiam ser Facebook, Microsoft ou Yahoo!; as sinergias com a Bloomberg seriam menos óbvias.
É altamente improvável que o “Times” seja vendido no curto ou médio prazos. Tem uma ideia clara de como se adaptar à revolução digital e algum dinheiro para investir. Poderia, talvez, sair da bolsa, eliminando a obrigação de divulgar os resultados trimestrais aos acionistas, que pressionam sempre por lucros maiores. Mas se, no longo prazo, os recursos forem insuficientes, não deverão faltar candidatos para comprar ou associar-se ao jornal mais influente do mundo.
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Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição