Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A vitória da estupidez

“Eu tava falando pra ele ir embora, o cara quer ficar filmando… vai arriscar a vida à toa pela Globo, porra?”

Assim o militante da Mídia Ninja relatou a agressão contra o repórter Júlio Molica, da Globo News, que cobria desde o início a manifestação no Centro do Rio de Janeiro durante o 7 de Setembro (ver aqui). Com um celular, Molica documentava ao vivo a movimentação, a gratuidade da violência policial, a correria provocada pelo disparo de bombas de gás. Algumas vezes teve de interromper a transmissão, sufocado pela fumaça tóxica.

Já ao fim dos protestos, quando o grupo remanescente de manifestantes se reuniu em torno do monumento a Zumbi, na Praça Onze, foi “descoberto” por alguns jovens mascarados, e logo insultado, agredido, encurralado. Escapou graças à intervenção de um segurança, um advogado representante da OAB e um militante sindical da área da saúde.

O Ninja bem que avisou. Imagina: como ousava exercer sua profissão, ali, em plena luz do dia, na frente de todo mundo? “Eu falei com ele pra ir embora, que ia dar confusão, ele não quis… tá arriscando a vida por uma matéria… aí é foda”.

Por que iria dar confusão? Por que jornalistas são impedidos de atuar – não pela polícia, que reprime sistematicamente tanto repórteres da grande imprensa como os da mídia alternativa, mas pelos próprios manifestantes? Como é possível imaginar que correria risco de vida, não pelo disparo de bombas de gás ou balas de borracha, mas pela fúria de militantes?

Ah, claro, porque esse povo perfeitamente esclarecido sabe que “a Globo apoiou a ditadura” – como praticamente toda a mídia instituída à época, e como uma boa parcela da população também – e por isso, como toda mídia instituída agora, deve ser proscrita. Não importam as grandes e pequenas reportagens de denúncia, inclusive durante a ditadura, que fazem parte da história da nossa imprensa. Mesmo porque, apelar para a história é apelar para o cultivo da inteligência, o que é pedir demais a quem se satisfaz com a simplificação das palavras de ordem.

Em nome do jornalismo

Já tive oportunidade de escrever neste Observatório (ver aqui) sobre essa inversão de valores que defende a censura em nome da liberdade. O resultado é trágico, como comprovam as experiências de outras épocas, e no caso da mídia não pode ser outro além da mais abjeta deturpação.

O entusiasmo com que a Mídia Ninja foi recebida, quando apareceu para um público mais amplo durante as manifestações de junho, levou a conclusões apressadas, como a de que se tratava de um divisor de águas, uma saudável ruptura com os valores da imprensa. As críticas à opção pela transmissão ao vivo, em “tempo real” e sem edição eram rapidamente desqualificadas, como se esse tipo de transmissão tivesse o poder de informar “a verdade”.

Aos poucos, vai ficando claro o estrago que essa ruptura com os valores da imprensa pode causar, quando esses que, por despreparo ou má-fé, empunham seus celulares na defesa cega de uma causa.

Sobre a cobertura do 7 de Setembro em São Paulo, Luciano Martins Costa apontou neste OI o que chamou de “erro de avaliação” diante da agressão a um policial que foi derrubado de sua moto e por pouco escapou de ser linchado:

“Interessante observar que cinegrafistas da Mídia Ninja atuavam como repórteres a serviço dos ‘black bloc’. No episódio em que o policial foi atacado pelos militantes, o jornalista ninja tomou claramente uma posição favorável aos agressores, o que impõe um problema ao coletivo de midiativistas: ao buscar a compreensão desse movimento, correm o risco de oferecer justificativas para atos arbitrários injustificáveis” (ver íntegra aqui).

O fato chamou a atenção de alguns dos que acompanhavam a transmissão. Uma dessas pessoas comentou: “Apoio vocês, mas não sejam injustos. Desinformação gera somente ódio sem propósito”.

No caso do Rio, o militante da Mídia Ninja evitou que o celular do repórter – que, curiosamente, chamou de “ninja da Globo News” – fosse roubado por um “black bloc”, como ele mesmo denomina na narração. Porém, ao mesmo tempo em que apelava para a não-violência, ajudava a excitar os agressores, através dessa lógica rasteira: “Garoto novo, garoto novo, quer ganhar espaço na mídia (…) pra ganhar dinheiro, pra ter nome na mídia tradicional, e arrisca a vida. Não pode”.

Mais um “erro de avaliação”, quem sabe.

Há cerca de duas semanas esse garoto novo, junto com sua colega – também garota nova –, foi escorraçado da Câmara dos Vereadores do Rio por um bando de brutamontes que ocupou as galerias para intimidar quem protestava contra a CPI dos ônibus. Agora, a cena se repetia, com outros protagonistas mas métodos idênticos.

Não passou pela cabeça do ninja – garoto novo, novíssimo – que o jovem repórter da Globo News, num caso como no outro, não estava ali pela Globo, mas pelo jornalismo.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)