Estive por cerca de duas horas no Centro do Rio, no Sete de Setembro. Cheguei cedo, com um amigo, e andei da Cinelândia à Candelária por uma Av. Rio Branco quase deserta. Lembrei-me da manifestação de 17 de junho, quando a avenida se transfigurou em evento político de massa, os imensos edifícios comerciais saudando com luzes piscando e chuva de papel a multidão que passava. Já na Uruguaiana, um grupo de manifestantes se reunia com bandeiras e cartazes. Mas a imensa Av. Presidente Vargas era quase plácida. Sob um sol de verão, esparsas e modestas famílias endomingaram-se para ver a parada (elas existem e mereceriam um comentário à parte). No palanque diante do prédio pesado do Ministério da Guerra alguém narrava o desfile pouco imponente, quase provinciano (estive na China nos 60 anos da República Popular Chinesa e assisti a sua colossal e opressiva parada militar), a que não faltaram nem mesmo dois ridículos jet-skis e uma pirâmide humana sobre uma moto que mais parecia uma paródia de grupo de acesso do Paulo Barros.
Foi quando ouvimos bombas explodindo a uns cem metros de nós e pessoas correndo, muitas com crianças no colo, fugindo do gás e do conflito. Ao chegarmos ao local do confronto, já só havia jornalistas, alguns poucos manifestantes e mais tropas do Batalhão de Choque chegando. Uma jornalista conhecida me explicou o que acabara de acontecer (reprimindo um grupo de Black Blocs, a polícia jogou bombas na frente da arquibancada do desfile). Ficamos por lá mais algum tempo. A situação se acalmou naquele ponto. Voltei andando à Cinelândia. O grupo da Uruguaiana adensara um pouco.
À altura
No caminho de volta me ocorreu checar na internet a cobertura dos protestos. As manchetes e as fotos dos grandes jornais revelavam um acontecimento mais intenso do que eu pudera testemunhar, em presença. No dia seguinte, a capa da “Folha de S.Paulo” trazia uma foto em que um grupo de manifestantes (mascarados, na maior parte) é enfrentado pela tropa do Choque. Mas há um terceiro grupo, sob todos os aspectos (quantidade de pessoas, posição na composição da imagem e peso simbólico) equivalente: o grupo dos fotógrafos. Nos grandes protestos de junho, a imprensa tradicional foi atropelada pelos acontecimentos e sobrevieram as mídias alternativas, com suas narrativas contraideológicas (é quase ficcional, de tão carregado de sentidos, que, no começo de tudo, uma repórter da grande mídia tenha levado um tiro no olho). Agora, no refluxo das massas, vemos a mídia, tanto quanto somos vistos por ela. Os fotógrafos cercam o acontecimento, que já é esperado. É uma sensação estranha essa simultaneidade de real e representação, acontecimento e controle, ato e teatro. Diante de tantas e tão ostensivas câmeras, os participantes do acontecimento real agem como se estivessem em cena. É claro que essa é uma função deliberada da imprensa (limitar os excessos e ilegalidades pela presença do olhar vigilante). Mas há mais que isso. O acontecimento real é como que esvaziado de energia, que por sua vez é recuperada na instância da representação, que é onde a maior disputa se dá nesse momento. A praça é a mídia.
Um breve comentário sobre a querela Marilena Chauí versus Black Blocs. Não sei se entendo o porquê de ela afirmar que eles atacam indivíduos (e seriam, por isso, fascistas), já que suas estratégias são de defender os manifestantes e atacar símbolos do capital. Compreendo (e compartilho) o repúdio de Marilena à recusa das institucionalidades, que ela enxerga nos Black Blocs. E me parece óbvio que o anarquismo é uma forma completamente incompatível com sociedades complexas e avançadas como as nossas (também concordo com ela quanto à puerilidade desse tipo de proposta ou desejo). Mas tendo a ver os Black Blocs como um grupo cuja maior virtude é justamente a sua dimensão negativa, que vem mantendo a tensão política neste momento de desmobilização das multidões. Penso que há nisso uma tentativa de abrir o espaço político para que as institucionalidades possam ser refundadas. Já esse momento seguinte, construtivo, não poderia de modo algum ser anárquico. Entretanto compreendo, em mais uma volta do parafuso, que Marilena considere que para haver processo revolucionário é preciso haver direção, análise aguda da conjuntura social e projetos de novas institucionalidades. Um processo revolucionário é como um ato, em psicanálise: a ação transformadora efetiva é o corolário de um processo simbólico amadurecido – que é precisamente o que ela não vê nas redes sociais e nos Black Blocs. Nada disso é absurdo. Lamentável é fazer barato de uma pensadora da grandeza de Marilena. Quem lhe for contestar os argumentos deve atravessar sua capacidade de formulação e responder à altura dela.
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Francisco Bosco é colunista do Globo