Na quinta-feira (12/9), a editoria de Ciência da Folha de S.Paulo colocou no ar a seguinte matéria (grifo meu): “Depois de 36 anos voando pelo espaço, Voyager sai do Sistema Solar”, de Salvador Nogueira. O assunto reapareceu em chamadas posteriores, além de ter sido destaque na versão impressa do jornal, no dia seguinte. Na tarde de sábado (15/9), alguém (finalmente) consertou a barbeiragem (ao menos em parte), ajustando o título da matéria e uma das versões da chamada para “Depois de 36 anos no espaço, sonda Voyager sai do Sistema Solar“.
O xis da questão é que as sondas espaciais – ou qualquer outro objeto lançado para fora da atmosfera da Terra – não voam. Um dicionário comum nos ajudaria a evitar esse tipo de confusão. Eis o que registram dois deles:
FERREIRA (2009, p. 2072): voar. [Do lat. volare.] V. int. 1. Sustentar-se ou mover-se no ar por meio de asas ou de aeronaves […].
HOUAISS (2003, p. 539): Voar v. int. (mod. 1) sustentar-se e mover-se no ar […]
Vejamos agora o que os dois dizem a respeito da palavra “ar”:
FERREIRA (2009, p. 174): ar. [Do gr. aér, pelo lat. aere.] S. m. 1. Camada gasosa que envolve a Terra; atmosfera […].
HOUAISS (2003, p. 40): Ar s. m. 1 mistura gasosa que forma a atmosfera terrestre […]
A confusão está desfeita: voar é algo que se faz apenas e tão-somente no ar – i.e., na atmosfera terrestre. (Ou, quem sabe, na atmosfera de outros corpos celestes.) A sonda da Nasa nunca voou, pois não se voa no espaço sideral.
Nem voando nem vagando
Mas a Folha não foi o único veículo que se atrapalhou com a escolha dos verbos. No mesmo dia, o jornal O Globo publicou a matéria “Voyager 1 já vaga entre as estrelas“, de Cesar Baima. Eis o que os dicionários dizem a respeito do verbo usado na manchete:
FERREIRA (2009, p. 2031): vagar. [Do lat. vagare.] V. int. 1. Andar sem destino; errar, vagabundear, vaguear […].
HOUAISS (2003, p. 529): Vagar v. trans. int. (mod. 1) 1 andar sem destino (por) […]
Outro verbo mal-empregado. Afinal, apesar da distância e do tempo transcorrido, a Voyager continua respondendo aos comandos enviados da Terra – para detalhes (em inglês) sobre a missão, ver aqui; para comentários em português, ver SAGAN (1996) –, rumo a um destino previamente estabelecido.
Nem voar nem vagar. O que a sonda da Nasa tem feito ao longo dos últimos 36 anos poderia ser apropriadamente descrito com outro verbo: navegar – a Voyager está navegando para fora do Sistema Solar.
Referências
** FERREIRA, A. B. H. 2009. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 4ª edição. Curitiba, Positivo
** HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. & FRANCO, F. M. M. 2003. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva
** SAGAN, C. 1996. Pálido ponto azul. São Paulo, Companhia das Letras
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)