Polêmicas de qualquer natureza costumam atrair o interesse dos veículos de comunicação, talvez porque reúnam uma complexa e diversificada gama de critérios de noticiabilidade.
Na quinta-feira (12/9), um projeto de natureza polêmica foi aprovado pelos vereadores de Joinville (SC): a proibição do consumo de bebida alcóolica em locais públicos da cidade. Imediatamente, o assunto repercutiu nas redes sociais, levando, inclusive, a um protesto público marcado para o sábado posterior via Facebook.
Para além das questões socioculturais que a proposta projeta, e para além das discussões sociológicas que origina, algumas críticas pontuais foram levantadas por leitores que se sentiram traídos pela imprensa na sua função informativa e reflexiva. Ao mesmo tempo em que a informação circulava, parecia que se apresentava na superfície, sem exigir a profundidade e o amplo debate que questões polêmicas costumam gerar.
Entendemos que, nas redações, existe uma série de tensionamentos que influencia diretamente na forma como a notícia é apresentada ao leitor. Os problemas de tempo, o limite de espaço, as divergências entre editor e repórter e a própria linha editorial do veículo condicionam o estilo do texto e o modo como este vai para a rua. Esse olhar para o produto sempre acompanhado de um olhar para o processo, difundido nos estudos de newsmaking, não nos permite tachar reportagens ou coberturas como boas ou ruins. Mas, permite, sim, que exista uma reflexão em torno da imprensa e das lacunas que ela pode tentar superar.
Diante dessa polêmica, selecionamos as reportagens do jornal de maior circulação de Joinville, o A Notícia, para analisá-las criticamente e buscar uma abordagem complexa para um problema igualmente complexo, que não deve se restringir à mera cobertura factual ou mesmo à apresentação de argumentos contrários ou favoráveis.
Em um momento em que a informação circula em diferentes meios, vinda de quaisquer fontes, cabe ao jornalismo o papel de fazê-la transcender sua factualidade ou sua mera descrição e oferecer ao leitor a possibilidade de refletir, analisar os fatos e transcende-los. Entendemos que o receptor tem seus próprios modelos de apropriação e que o emissor não tem controle sobre esse processo, mas a função social do jornalismo revela que não há outro caminho para os meios que não passem pela interpretação e problematização dos fatos e da sociedade.
As notícias
Este artigo se concentra na análise de cinco textos do jornal A Notícia, publicados antes e durante o trâmite do projeto de lei proposto pelo vereador James Schroeder, segundo o qual fica proibida a circulação de bebida alcóolica nas ruas de Joinville.
A primeira notícia foi publicada no dia 15 de março, com o título “Bebida alcóolica nas ruas de Joinvile pode ser proibida“. Trata-se do material mais aprofundado dentre os analisados, pois, além de um texto de abre, é composto por três retrancas relacionadas diretamente ao assunto, que sugerem a perspectiva de ampliar a discussão. Uma conta com a opinião de um especialista, outra tem uma entrevista com o então comandante da Polícia Militar e um terceiro texto fala sobre cidades em que a medida já é aplicada. Embora estes três textos também tenham sido avaliados, no site do A Notícia eles têm a leitura bloqueada para não assinantes.
A segunda notícia, de 1 de junho, “Câmara de Joinville esfria dez projetos polêmicos“, apesar de relacionar o assunto no lead e como infográfico, não é voltada unicamente para o debate deste tema, mas de outros, igualmente considerados polêmicos pela reportagem, que também podem gerar debate popular.
A terceira notícia, do dia 4 de junho, é intitulada “Projeto que quer proibir bebida alcóolica na rua deve ser rejeitado na Câmara de Joinville“ e traz uma abordagem essencialmente política, que trata da tramitação do projeto e da possibilidade de ele não ir à plenário.
O quarto texto, ”Legislativo de Joinville volta ao trabalho nesta quinta-feira com polêmicas à vista“, foi divulgado dia 31 de julho com a perspectiva de oferecer uma análise mais panorâmica sobre os projetos que mais deveriam gerar debate no semestre, mas também não se aprofunda em nenhum debate específico sobre o projeto em questão.
Por fim, o quinto objeto de análise, ”Câmara de Vereadores de Joinville aprova a lei que proíbe consumo de bebida alcóolica em locais públicos“, divulgado no dia 13 de setembro, fala sobre a aprovação e legitimação do projeto.
Reforçamos que a análise foi feita a partir dos textos do jornal impresso disponibilizados pela portal online, o que impossibilita a apreciação estética da página e a análise mais precisa da forma como o conteúdo foi disposto.
A seguir, detalharemos pontos específicos levantados a partir da leitura dos textos.
Do acompanhamento dos fatos
Ao contrário de publicações que levantam assuntos e os deixam nascer e morrer em uma edição, o jornal A Notícia cumpriu seu dever de acompanhar algo que provocava debates e controvérsias. Conseguiu capturar a polêmica quando o projeto ainda não estava no plenário e o trouxe à tona em pelo menos duas outras reportagens, ainda que de maneira pouco significativa. Também tratou de buscar a antecipação de uma resolução para o conflito, ainda que tenha errado ao sugerir que o projeto não deveria ser aprovado e que não tenha retomado esse assunto posteriormente.
É dever dos jornais e dos jornalistas possibilitarem que o leitor relembre fatos que ficaram para trás, distantes no tempo e no espaço. O profissional da imprensa deve trabalhar com a memória e dela se nutrir para oferecer ao público a possibilidade de recuperar assuntos que não podem ser esquecidos.
Fontes: a pluralidade ou mais do mesmo?
Nesta análise, consideramos como principal ponto da cobertura o vício e a insistência em transformar fontes oficiais nas principais fontes dos textos. No texto “Projeto que quer proibir bebida alcóolica na rua deve ser rejeitado na Câmara de Joinville”, apenas duas fontes são consultadas, e uma delas é o autor da proposta.
Há que se considerar que todo vereador tem interesses privados e pessoais junto ao eleitor. Sendo assim, quando ele desenvolve um projeto e o protocola, é natural levar em conta que exista uma intencionalidade no ato, que não meramente a de legislar. Quando o repórter dá a voz para que o autor justifique sua proposta, ele permite que o mesmo se legitime diante da opinião pública. A citação do parlamentar deixa claro que sua presença no texto é meramente protocolar e não contribui com o desenvolvimento do assunto. Diz ele:
– É uma medida que possui um grande apoio e não traz perdas a nenhum meio. O aviso que havia recebido sobre a contrariedade da proposta é anterior a audiência pública, onde 100% dos presentes querem a aprovação do texto –, garante James.
Além de legitimar seu projeto, o parlamentar cita uma audiência pública e aponta, inclusive, para uma suposta unanimidade. Se a reportagem teve acesso à audiência, seria natural dar voz ao que foi dito, amplificar discursos anônimos. Mas, não havendo essa possibilidade, é de se questionar que o texto permita que o leitor acate a fala do vereador que respalda um consenso sem ao menos buscar desvendar quantas pessoas estavam presentes e se o consenso realmente foi a tônica do debate.
Quanto à pluralidade, o contraponto à fala do autor da proposta fica evidenciado no depoimento do vereador Maurício Peixer, que diz que:
– O texto possui ilegalidade. O vereador já havia sido avisado, mas teve tempo para tentar buscar algo que pudesse validar a proposta –, disse.
Apesar de o tom contrário à proposta ser predominante, a discussão, aqui, situa-se no limite da técnica. Não há divergência e polêmica quanto à natureza e quanto às peculiaridades da proposta, que tratam do uso do espaço público, algo que afeta diretamente todos os cidadãos, independente da posição que ocupam.
Na primeira reportagem publicada sobre o tema, a principal fonte do texto de abre também é o vereador, que afirma:
– O que queremos é justamente promover o debate sobre o consumo de álcool entre os jovens. A lei vai permitir que a polícia aja preventivamente e não precise ir até um local depois que uma aglomeração de jovens com som alto e bebidas, por exemplo, já tenha virado bate-boca ou vias de fato com vizinhos incomodados, o que acontece com frequência nos bairros –, exemplifica
A fala do vereador abre uma deixa para a reportagem que acabou não sendo cumprida. Com base em que ele afirma que esse tipo de aglomeração ocorre com frequência nos bairros? Onde estão os dados sobre isso? É legítimo deixar um depoimento explícito sem questionar ou, ao menos, propor a si a missão de descobrir? Novamente, o parlamentar legitima a si próprio sem que o jornal se proponha a avaliar o fenômeno de forma complexa.
Interpretação e análise
Ainda sobre o caráter oficial das fontes selecionadas para os textos, em apenas uma reportagem foram ouvidos outros analistas: também foi no primeiro texto da cobertura, publicado em março. Há uma aposta na controvérsia a partir do discurso favorável e contrário ao projeto. Recorre-se, inclusive, a um sociólogo que já ocupou o posto parlamentar para avaliar a questão.
É papel do jornalismo elucidar, interpretar e refletir sobre os fatos, elemento que faltou nas reportagens avaliadas nessa cobertura. O debate fica restrito às burocracias da Câmara. É modesto o espaço que se dá à opinião de especialistas. Um jurista, por exemplo, poderia ter sido consultado a fim de que se debatesse a constitucionalidade do projeto no texto que prevê a rejeição da proposta na Câmara. Um representante de algum Conselho de Segurança Local (Conseg) também deveria ter tido espaço, já que, em trecho de um dos textos, o órgão parece ter sugerido a proposta.
A proposta surgiu de reuniões com os conselhos de segurança (Conseg) de Joinville, que sempre reclamavam do barulho gerado por quem bebia em locais públicos.
Se realmente existia essa reclamação, parece natural que a reportagem as buscasse na sua origem, com a intenção de elucidar o tema e de ampliar as vozes para além dos muros da Câmara, uma casa cada vez mais política e pouco aberta a reflexões para fenômenos sociais desta ordem.
Mesmo com relação ao jogo político a cobertura parece superficial. Ora, se houve uma notícia dando conta de que o projeto deveria ser rejeitado e ele não foi, por que isso não fica claro? O que teria ocorrido nos bastidores para que a proposta passasse na votação plenária? Faltam ingredientes para que o leitor compreenda efetivamente o que aconteceu.
A polêmica pela polêmica
Muito embora se recomende em todos os manuais de redação que o jornalista evite o uso de adjetivos ou de palavras que insinuem qualquer tipo de julgamento de valor, em dois dos textos analisados o projeto é exposto acompanhado do adjetivo “polêmico”. Conforme já mencionado, é válido considerar o papel do jornalista no que se refere ao acompanhamento dos fatos, mas a memória não pode e não deve ser protocolar.
Nos textos “Legislativo de Joinville volta ao trabalho nesta quinta-feira com polêmicas à vista” e “Câmara de Vereadores de Joinville esfria dez projetos polêmicos”, a proposta é tratada de forma resumida, sem expandir a reflexão sobre os temas. Nas duas, o foco parece ser a lentidão dos processos. Apenas em um dos textos existe uma contextualização, em um infográfico, sobre do que tratam os projetos “polêmicos”.
Ao mesmo tempo em que é dever do jornalista fiscalizar e cobrar do poder público supostas morosidades, é natural entender que quanto maior a polêmica, maior a necessidade de debates em torno das questões. Nesse caso, a morosidade não poderia ser considerada uma crítica, mas uma necessidade.
No geral, os textos parecem querer reforçar as polêmicas sem dar, ao leitor, elementos para que as compreenda. A reportagem parece considerar o projeto curioso (outro adjetivo que é, inclusive, utilizado em linha de apoio), mas não justifica ao leitor o porquê.
Considerações finais
Esta crítica foi elaborada com a intenção de contribuir com o debate e estimular que as reportagens sobre política se permitam sair das redomas que cercam os poderes legislativo, executivo e judiciário.
Em muitas ocasiões isso não será possível pela natureza dos projetos. Em uma cobertura polêmica como a do mensalão, por exemplo, é difícil transcender a pauta para o espaço público sem recorrer às enquetes, que pouco contribuem para o debate.
Mas em circunstâncias que envolvem os cidadãos de forma direta, é vital que o jornalismo se desacomode da editoria e busque interações com a cobertura de geral. Nos textos analisados, faltou a investigação de fatos que são sequer mencionados: por que os jovens bebem nas ruas? Não seria a falta de espaços públicos apropriados para o lazer e a diversão? Não seria a falta de opções culturais e educativas? A mim, pessoalmente, parece que sim.
Entendemos todas as tensões que circundam uma redação. Há sempre negociações de espaço, de tempo e, até, divergências editoriais. Para tentar compreender essa questão, enviamos um questionário a um dos repórteres que participou da cobertura, mas ele preferiu não responder por considerar as perguntas tendenciosas (este questionário está exposto abaixo).
A ideia de fazer este artigo surgiu após um extenso debate em rede social sobre a forma como a imprensa havia tratado o projeto. Entendemos que ela existiu e, de certa forma, foi extensa, considerando o volume de materiais produzidos. Mas quantidade não significa qualidade. E mesmo que o tempo e o espaço não permitam que esse trabalho seja feito no dia a dia, o repórter, consciente de seu papel, deve exigir e se posicionar para que ocorra com mais frequência.
É claro que a profundidade completa nunca será atingida em um texto jornalístico. Para isso servem as pesquisas acadêmicas, os livros e a ciência de uma forma geral. Mas tentar atingi-la deve ser meta de quem ocupa essa importante função social, para que o leitor realmente possa se sentir contemplado, informado e preparado para um debate amplo.
Questionário sugerido ao repórter:
1. Quando o projeto que proíbe o consumo de bebida alcóolica se tornou pauta? É possível explicar o motivo?
2. O projeto ficou tramitando por pelo menos seis meses. Em quais momentos o jornal decidia que deveria falar novamente sobre ele?
3. Quanto tempo de apuração, em média, cada uma das matérias demandou? Você acha que esse tempo foi suficiente?
4. Houve corte significativo nos textos?
5. Em algum momento foi sugerido ao repórter ou à edição que o assunto não estivesse focado somente na tramitação do projeto, mas também no impacto que ele poderia ter ou na polêmica que poderia originar?
6. Identificamos que a principal fonte das matérias é sempre o autor do projeto, James Schroeder. Poderia justificar o motivo
7. No geral, como o senhor avalia a cobertura do ponto de vista da informação? Acha que faltou algo a ser dito para que o leitor compreendesse melhor o projeto?
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Amanda Miranda é jornalista formada pela UFSC, cursa doutorado em Comunicação na UTP e é professora do Bom Jesus/Ielusc