Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um jornal que já não há

Olhando pelo retrovisor, sempre generoso com o que nos passou, lembro-me que meu encontro com o jornal O Cometa Itabirano aconteceu um pouco por mágica e outro tanto pela predestinação.

Minha família havia se mudado de Itabira há dez anos e durante esse período fui me tornando um rapaz distante de minha terra. Naqueles dez anos, eu havia ido para os Estados Unidos, onde terminei meu curso secundário em Michigan. De volta para o Brasil, levei um choque tremendo ao perceber como a ditadura militar havia mudado as relações entre as pessoas. Não era, definitivamente, um sentimento positivo. Já no aeroporto do Galeão fui achacado por agentes aduaneiros e percebi, além de tudo, que o cheiro do aeroporto era uma mistura nauseabunda de urina e pessoas sujas que vagavam na esperança de aplicar um golpe qualquer em alguém. Milicos enormes andavam para cá e lá com cassetetes e metralhadoras.

Pior era que as pessoas, de forma geral, não percebiam a extensão do pesadelo. Assim, julguei que eu próprio estava sendo vítima de um sonho kafkiano. Decidido esse ponto, optei quase que de imediato por combater aquele filme de terror. Como, eu não fazia a menor ideia, mas a ditadura se encarregou de resolver por mim: não haviam se passado quatro dias de minha experiência brasileira quando fui preso com meu irmão Robertson. Nem ele nem eu havia feito absolutamente nada para justificar aquela prisão absurda. Descobri ali que qualquer ajuntamento de mais de quatro ou cinco pessoas era motivo para que os vizinhos chamassem o Dops com suas trágicas Veraneios para nos levar em nome da boa ordem social.

Solto, depois de ouvir um sermão lastimável de um delegado asmático, resolvi que de duas uma: eu ou a ditadura. Para ganhar a vida, passei a dar aulas de inglês, mas, como adquiri o hábito de doutrinar meus alunos sobre democracia, liberdades individuais, direitos humanos e outras heresias, era sempre convidado a passar no departamento de pessoal para acertar minhas contas.

Até que fiquei conhecendo uma singular organização terrorista. Dirigida por um capitão da reserva do Exército, completamente surdo e meio gagá. E fui para a clandestinidade. Minha função era, sob o disfarce de um mero professor de inglês – o que eu era –, arrebanhar novos cristãos para uma futura luta armada. O capitão surdo era encarregado de providenciar as armas em um quartel em Ribeirão Preto.

E fiquei nessa vida, com mais ou menos sucesso, entre 1975 e 1977, morando em hotéis sórdidos em diversas cidades mineiras. Mas em 1977, apaixonado por uma moça absolutamente alienada, voltei a Belo Horizonte, depois de ser preso novamente em Varginha – e não porque eu era um ET…

Dez anos

Preocupado com minha situação, já que eu podia “desaparecer” a qualquer instante, meu pai conseguiu que eu fosse trabalhar no Iraque. Deve ter pensado que, longe assim, esse cara não vai mais arrumar confusão. É o que eu pensaria, de qualquer forma.

De qualquer forma, fui para a Europa. Passei meses na Itália. O país estava metido em uma confusão terrível, com atentados e mortes, patrocinados pelas famosas Brigadas Vermelhas. Adorei aquilo tudo, tive alguns casos românticos com moças lindas e revolucionárias.

Encurtando, diverti-me imensamente no Iraque, no Líbano, no Kuwait e, de volta para casa, na França.

E afinal, de volta, mas não sossegado, eis que vou a Itabira depois de dez anos e me encontro com meus velhos amigos e colegas, que tramavam criar um jornal, já apelidado de jornaleco. Descobri ali, na porta da casa de dona Iá Sampaio, no bairro Pará, que aquele era meu destino.

E me uni àqueles caras, como o Lúcio Sampaio, o Altamir Barros, o Carlos Cruz, o Tiusguinha (Agostinho Souza), o Lelinho Assuero, o Genin Quintão Guerra, o Touro (Humberto Sampaio) e começamos a fazer o que seria O Cometa. Na verdade, eles começaram, pois eu ainda levei meses para criar coragem e entrar pra valer no projeto mais alucinado e ao mesmo tempo lúcido de minha vida.

O jornal era feito em longas e caóticas reuniões etílicas na casa do Lúcio e de lá saíamos com nossas pautas, imediatamente revogadas assim que surgiam assuntos mais importantes. Tudo com muita música, longas conversas sobre cinema, teatro e literatura.

O jornal era e foi uma tremenda experiência coletiva. Debatia-se tudo e mais um pouco, sem medo de rusgas. Poderíamos ter feito um partido político decente, mas aí o jornal não duraria o tempo que durou.

É bom que se note. Cada um de nós trazia na alma experiências diversas, mas a soma de todas essas raízes dava frutos e sombra para todos. Mas falo aqui de um jornal que já não há. Aquele Cometa durou exatos dez anos e acabou. Sua morte ainda não foi anunciada por razões que não me cabe discutir aqui. Mas olhem: foram dez anos de um ganho emocional fabuloso para todos os que participaram daquela aventura maravilhosa que foi O Cometa. Que descanse em paz.

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Robinson Damasceno é jornalista e escritor