Essência da democracia política, o processo eleitoral é também – e não apenas no caso brasileiro – um mecanismo de “redução a termos”. De simplificação do debate. A mídia jornalística é o lócus por excelência onde se condensam as ideias. O horário obrigatório de propaganda eleitoral na televisão é o território da venda de sonhos e ilusões. Em ambas as instâncias, estará entre as preocupações principais dos contendores “desconstruir” o adversário, se e quando conveniente.
O parágrafo acima é uma proposta de resumo da coisa. Resumo rombudo, usado só para introduzir o tema. Que pode ser traduzido também da seguinte maneira: a lógica implacável do processo eleitoral já se infiltrou em todos os poros do debate político.
Ou quase: a provocação do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) durante visita de uma comissão parlamentar ao antigo DOI-Codi da Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, noticiada nos jornais de terça-feira (24/9), faz parte de uma história de horror que antecede e sucederá as peripécias eleitorais correntes, embora se articule com elas: não é verdade que Bolsonaro é filiado ao partido de Paulo Maluf, herdeiro da Arena via PDS de José Sarney e hoje leal integrante da base aliada do governo Dilma Rousseff?
Duopólio
O debate político se empobreceu no Brasil como reflexo da própria divisão do território de luta pelo poder em dois grandes campos, tucanos e petistas, forças que por ora definem as batalhas nas esferas federal, de estados com maior peso socioeconômico e político (não todos, haja vista o caso do Rio de Janeiro) e da cidade global brasileira, São Paulo.
A mídia jornalística que influi nacionalmente permanece a reboque do duopólio. Talvez não tenha alternativa. Talvez. Permanece, portanto, sujeita aos efeitos do empobrecimento, já que lhe cabe dar voz a personagens de uma arena política visceralmente contaminada pelo maniqueísmo.
Esse maniqueísmo não tem raízes ideológicas consistentes. É subordinado a sistemas distintos de poder que, ao longo dos anos da redemocratização, criaram suas respectivas constelações de interesses pivotadas pela apropriação privada (ainda que coletiva, sindical – de trabalhadores ou patrões –, corporativa) da coisa pública.
Simplificação binária que se torna cômica quando levada ao pé da letra. Eis um exemplo. Na edição de segunda-feira (23/9), o Valor deu entrevista de página inteira (A-16) com a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffman. Gleisi mostrou desembaraço na exposição sobre concessões na área de infraestrutura. Mais do que isso, desdenhou uma crítica típica do repertório tucano. Está no título da matéria: “É besteira dizer que não gostamos do setor privado”.
Dois dias depois, o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (governos dos generais Costa e Silva, Médici e Figueiredo) Delfim Netto, professando seu desejo de que o governo Dilma seja bem-sucedido e de que haja uma retomada robusta do desenvolvimento, afirma ter-se esgotado “nos resultados medíocres obtidos até aqui” o tempo disponível para aquilo que ele considera decisivo, o “resultado do processo licitatório das obras de infraestrutura”.
Com alguns golpes de pena, varre a sapiência administrativa exibida pela ministra e seus pares no governo: “É tempo de terminar com o experimentalismo”.
Não deixa de ser curioso que, na grande barafunda reinante, Delfim vista comodamente a roupa de conselheiro benevolente do governo Dilma, como já o fora do governo Lula.
Leia notícias
Continua sendo válida a recomendação de que se dê sempre preferência ao noticiário, de longe superior em relevância ao opinionismo. (Notar que nem todo artigo é mero exercício de opinião. Rendam-se homenagens a articulistas como Washington Novaes, que costuma exibir alertas e preocupações estribados em informações de boa qualidade.)
O pecado maior dos jornais não está nas notícias que publicam, mas no que não publicam, ou porque ignoram, ou porque filtram desastradamente/insidiosamente. E está, claro, na maneira como espetacularizam o noticiário, sempre caudatários da televisão, alimentada pela imagem, e imagem que, de preferência, emociona – assusta, excita. Conceda-se: às vezes faz pensar.
Um dos sintomas desse processo de perda de qualidade é a batalha assimétrica entre internautas e jornalistas dos veículos “tradicionais”. Ela envolve o pequeno grupo que tem poder aquisitivo e formação intelectual bastantes para frequentar as duas modalidades de comunicação. Pequena fração do povo com grande peso na opinião.
“Partidos” da imprensa
Nesse combate, quando jornais procuram cumprir sua obrigação de fiscalizar e fustigar o poder, são acusados de fazer parte de um “partido” que pretende dar um “golpe”. Ao acusar como “golpistas” os meios de comunicação que noticiam, cobram e reforçam ações de poderes da República contra criminosos, como no incontornável caso do mensalão, por exemplo, oculta-se o golpismo originário, aquele que recorreu ao suborno para a compra de apoio político, apenas copiando, sem grande inovação, o que se vem fazendo desde os primórdios da existência nacional. A melhor defesa é o ataque.
Como escreveu Marco Aurélio Nogueira (O Estado de S. Paulo, 28/9), criticando as duas “torcidas”,
“o que era para ter seguido trâmites processuais mais técnicos, compatíveis com essa instância judicial [o STF], ganhou uma turbulência que despiu o tema de boa parte da seriedade de que se revestira: em vez do crime cometido, foram para a berlinda os critérios e procedimentos do tribunal. Hoje não se discute mais o ‘mensalão’, mas seu julgamento” (texto completo em “Além do STF“).
Os jornais, sentindo-se injustamente agredidos e erroneamente convencidos de que lhes cabe preencher o papel de oposição, que os partidos nela supostamente alinhados são incapazes de representar, passam a ir muito além de suas tamancas. Não nos editoriais, onde lhes cabe ter a opinião que bem entenderem – dentro dos limites fixados na Constituição, é sempre bom lembrar –, mas no noticiário, que se torna caricatamente editorializado.
E assim, enfeitiçados pelo intenso foco numa paisagem muito restrita, da qual estão ausentes protagonistas essenciais – e aqui não se têm em mente apenas grupos humanos e pessoas, mas sobretudo redes e dinâmicas sociais –, tornam-se incapazes de fugir do jogo de cena dos poderes e contrapoderes.
A única certeza possível, nestes primeiros passos prematuros da campanha de 2014, é a de que o empobrecimento da cobertura da política pela mídia jornalística tende a se agravar, reflexo das vozes possantes dos dois grandes campos em confronto. Em disputa, um monumental butim de cargos, sinecuras, influências e outras apropriações capciosas.