“Sou obrigado a compartilhar uma reportagem do Jornal Nacional, por mostrar o que de fato aconteceu.”
O comentário é de um jovem midiativista em sua página no Facebook. A reportagem em questão é a do falso flagrante em que um policial tenta plantar provas contra um adolescente (ver aqui), na noite de segunda-feira (30/9), após protesto dos professores municipais em greve, no Rio.
A cena foi captada pela reportagem de O Globo e ajudou a identificar outro policial, um major, que também participou da tentativa de fraude e horas antes havia protagonizado um dos episódios mais emblemáticos de violência, ao acionar um gigantesco cilindro de spray de pimenta sobre um grupo de manifestantes encolhidos e indefesos.
Essa imagem também foi destacada no mesmo jornal e em vários telejornais.
O jovem midiativista compartilhou o vídeo por uma questão de honestidade. Talvez tenha se sentido “obrigado” a isso porque, como é comum entre os que se engajam na luta pela democratização da comunicação, parta do pressuposto de que a mídia hegemônica, e os veículos das Organizações Globo em particular, não mostram “o que de fato aconteceu”. É o mesmo pressuposto da edição de muitos vídeos “independentes” que circulam na rede com a promessa de exibir “o que a televisão não mostrou”, mesmo que, muitas vezes, tenha mostrado sim.
A propósito, foi também a grande imprensa – um fotógrafo de O Estado de S.Paulo – que produziu a imagem-síntese desta greve: a da professora de meia idade que encarou a guarda como o chinês solitário diante dos tanques no massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. A foto foi capa no jornal paulista e em O Dia (quarta-feira, 2/10). Dois dias depois, um repórter do jornal carioca publicava entrevista com a professora (ver aqui) e associava as duas cenas.
A crítica simplista
Um dos equívocos recorrentes da militância é a substituição da atitude crítica pelo puro e simples proselitismo: então, se percebemos que a mídia hegemônica está submetida a interesses empresariais e que suas promessas de isenção e imparcialidade não ultrapassam a declaração de intenções, achamos muito lógico rejeitar tudo o que provenha dela. É o que está na raiz da atitude de militantes que sistematicamente procuram impedir o trabalho de repórteres vinculados a essas empresas: partem do pressuposto de que a informação produzida por eles será “manipulada”, deturpada, ou que simplesmente não vai sair. E, em nome da democracia, agem no sentido contrário, tentando estabelecer zonas de exceção no uso do espaço público.
Daí a surpresa de ver no Jornal Nacional “o que de fato aconteceu”.
O automatismo nas acusações à “grande mídia” também facilita a proliferação de denúncias infundadas, como a de que O Globo havia publicado na capa de sua edição de 2/10 uma foto de vidraça quebrada, típica da atuação dos Black Blocs, em detrimento de imagens da violência policial contra os professores. Talvez essa foto, entre as muitas que documentavam a agressão contra os manifestantes, tenha sido destacada no site do jornal em algum momento do dia, mas a edição impressa traz capa bem diferente: uma bomba de gás em primeiro plano, espalhando fumaça, e policiais correndo. A foto da vidraça quebrada está de fato lá, mas numa página interna, e é jornalisticamente muito significativa: mostra um jovem do lado de fora, filmando com seu celular um segurança do banco atacado, que lhe aponta uma arma.
Por que O Globo, naquele dia, resolveu omitir cenas de violência em sua versão impressa, embora as acolhesse em seu site, é algo que só os editores poderão responder.
A crítica necessária
Cenas de violência explícita, entretanto, estão à vista de todos e hoje podem ser divulgadas por qualquer pessoa. Ignorá-las não é a decisão editorial mais inteligente. O problema são as relações de interesse e solidariedade entre governos e empresas de mídia: essas permanecem ocultas e são difíceis de comprovar, mesmo que denunciadas por vereadores da oposição em seus discursos. O que se pode constatar é o evidente favorecimento ao prefeito do Rio em sua “queda de braço” com os professores, principalmente pela ênfase do Globo à presença de militantes de partidos de esquerda na direção do sindicato, como se isso, por si, desqualificasse as reivindicações: as lideranças dos professores estariam instrumentalizando a categoria em nome de interesses particulares e escusos, enquanto o prefeito, embora também obviamente membro de um partido político, estaria agindo generosamente em benefício da população e dos próprios profissionais do ensino.
Mas não é apenas para não pôr em causa interesses ocultos que o jornal descumpre seu compromisso fundamental de informar com clareza: a imprensa, de modo geral, e especialmente os telejornais, não querem ou não conseguem realizar uma apuração autônoma sobre o plano de cargos e salários, centro de toda a polêmica. Optam por “ouvir os dois lados” e eximem-se de interpretação própria, como se isso demonstrasse isenção. Foi precisamente o mesmo comportamento adotado na cobertura da greve dos professores de universidades federais, ano passado.
Curiosamente, a capa do diário Extra (quarta, 2/10), com sua “nota zero” aparentemente aplicada ao prefeito, mereceu elogios por parte de quem tende à condenação automática das grandes corporações de mídia. “Ninguém se preocupou em detalhar à sociedade, para a qual a educação é voltada, o plano de cargos e salários”, acusou o jornal. Mas não é justamente à imprensa que cabe buscar esse esclarecimento? Um olhar um pouco mais crítico não deixaria escapar a ironia.
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Em Tempo (8/10/2013, às 11h37): Este artigo foi escrito antes da manifestação dos professores do Rio, na segunda-feira (7/10), que acabou como tantas outras, com um grupo de black blocs produzindo destruição e imagens pirotécnicas. Sempre haverá quem diga que a mídia privilegia essas imagens e não a da multidão pacífica. Poderia ser diferente? Sim. Bastaria não haver destruição. (S.M.)
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)