“Sigam o dinheiro”, indicou o Garganta Profunda aos repórteres do Washington Post que terminariam por desnudar o rei, provocando a renúncia de Richard Nixon. Bob Woodward e Carl Bernstein sabiam que andavam sobre o abismo, mas persistiram na investigação, pois o editor do jornal lhes garantiu apoio. “Sigam a história, custe o que custar”, teria dito Ben Bradlee. Dois meses atrás, o Washington Post foi vendido por meros US$ 250 milhões a Jeff Bezos, proprietário da Amazon. “Nós agora pertencemos a um cara tão rico que o jornal vale cerca de 1% de seu patrimônio líquido”, disse um tristonho jornalista após o encontro da redação em que a família Graham comunicou o negócio. O episódio lança um jato de luz sobre a encruzilhada em que se encontra o jornalismo – e não só nos EUA.
John Milton pronunciou sua clássica defesa da liberdade de imprensa em 1644, quando surgiam os primeiros jornais modernos. Durante os dois séculos da “pré-história” do jornalismo, os jornais e a opinião pública configuraram um ao outro. Mas o jornalismo, tal como o conhecemos, nasceu em meados do século 19, com a primeira revolução da informação, propiciada pelo telégrafo. Antes dominados por textos de opinião, os jornais encheram-se de notícias – e firmaram-se como infraestruturas públicas das sociedades abertas. No 16 de abril de 1912, um dia depois do naufrágio do Titanic, milhares de pessoas aglomeraram-se diante das sedes dos jornais de Nova York, disputando edições extraordinárias com as notícias da tragédia.
Os Grahams renunciaram ao Washington Post, que controlavam desde 1933, depois de sete anos de prejuízos. A revolução da informação em curso tem efeitos opostos aos da revolução pioneira. A notícia tornou-se uma commodity que já não paga o preço do papel de imprensa. O dinheiro deslocou-se das empresas jornalísticas para conglomerados de telecomunicações e de internet. Nos EUA, sob o pano de fundo de recuos gerais nas tiragens, na publicidade e na dimensão das redações, só o New York Times anuncia triunfos embrionários na árdua luta para se adaptar a um ambiente desafiador. O espectro da morte dos jornais ronda as sociedades – e provoca indagações sobre o futuro da democracia.
Critérios éticos
No Brasil a crise ainda é atenuada por uma expansão marginal das tiragens, mas o poder político tenta cavalgá-la para calar as vozes dissonantes. A paisagem salpicada de blogueiros chapa-branca que clamam pela censura em textos hidrófobos, circundados por banners da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, é apenas um sintoma superficial. O projeto de fundo não é censurar, mas sujeitar. O ex-ministro Franklin Martins, um destacado assessor de Lula, repete há anos, incansavelmente, uma ameaça velada. Os jornais, explica, só têm as alternativas de aceitar o “controle social da mídia” ou enfrentar mudanças regulatórias que permitiriam a aquisição das empresas jornalísticas por grupos bilionários fincados no mercado de telecomunicações. Bezos repetiu a célebre instrução de Bradlee, prometendo respeitar os valores do Washington Post. Não é prudente, porém, esperar o mesmo de outros magnatas pós-modernos – especialmente se operam concessões públicas.
Os jornais precisam mudar se pretendem sobreviver e resguardar sua independência. Um caminho é a revalorização dos textos de opinião. “Um bom jornal é uma nação dialogando com ela mesma”, disse certa vez Arthur Miller. Na internet cada esquina funciona como um palanque autossuficiente de opinião. Só os jornais, porém, têm o condão de reunir os interlocutores numa mesma praça, que não tem compromissos com o poder de turno. Esse curioso retorno às origens da imprensa não representa, todavia, mais que uma decifração precária do enigma da era da internet.
Numa época de informação abundante, o Estado protege como nunca seus próprios subterrâneos. “Sigam a história”: só o jornalismo possui as competências para desnudar o rei, expondo à luz do sol as vísceras dos governos. Edward Snowden procurou o Guardian e o Washington Post porque a denúncia da máquina de espionagem em massa da NSA precisava dos filtros e da credibilidade dos jornais. Uma investigação de O Estado de S. Paulo revelou nada menos que a montagem de um Estado paralelo, partidário, ilegal e clandestino, sob as asas do programa federal Minha Casa, Minha Vida.
Sem jornalistas treinados, redações estruturadas e critérios éticos de apuração os cidadãos só conheceriam as notícias manufaturadas por marqueteiros e assessores de comunicação. O jornal, impresso no papel ou distribuído em versões eletrônicas, continua a ser uma infraestrutura pública indispensável à democracia.
Sem medo
Minha trajetória pessoal se enlaça em pontos diversos com a história do Estadão. No início da adolescência aprendi bastante sobre a natureza das ditaduras pelos vislumbres proporcionados em páginas do jornal preenchidas com trechos de Os Lusíadas. À época eu produzia fragmentos de textos mentais na tentativa de imaginar as linhas que, riscadas pelos censores, jaziam ocultas debaixo dos versos de Camões. Nos últimos sete anos, a cada duas semanas, sem uma única interrupção, experimentei o privilégio de assinar artigos nesta página. Foram 183 textos, o equivalente a um livro de 560 páginas, que agora se encerra. Os difamadores do jornalismo, em geral regiamente remunerados, espalham a lenda de que “liberdade de imprensa é liberdade de empresa”. Eu testemunho que sempre escrevi exatamente o que quis – e, mais, que meus editores nunca souberam o que eu escreveria antes de receberem o artigo pronto.
“Sigam o dinheiro!”, dizem os estrategistas do rei aos jornais, animados com a perspectiva de transferir essas infraestruturas públicas a conglomerados que orbitam em torno do governo.
“Sigam a história!”, digo eu na despedida, repetindo aquele editor que não tinha medo de cara feia.
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Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP