Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Concorrência faz falta

O Globo agiu como sucursal da assessoria de imprensa do Palácio Guanabara na edição de quinta-feira (17/10). Sob o título “Lei mais dura leva 70 vândalos para presídios”, vandalizou reputações alheias. Para quem não viu:

Isso corresponde ao interesse político de Sérgio Cabral Filho na medida em que manifestantes, com absoluta regularidade, se manifestam contra seu governo nesses eventos. Ou seja: quem protesta contra o magnífico governo de Cabral Filho só pode ser vândalo, pirado ou coisa pior.

Águas turvas

As manifestações anti-Cabral Filho não decorrem apenas da contrariedade de pessoas e grupos com o rumo que as coisas tomaram no Rio de Janeiro. Resultam igualmente de conflitos políticos polarizados pelo calendário eleitoral de 2014. Mais concretamente, são obra de militantes da causa de Anthony Garotinho, governador entre 1999 e 2002 e muito influente no mandato subsequente, de sua mulher, Rosinha Garotinho. Teria sido influente também nos dois mandatos de Cabral Filho, cuja eleição patrocinou, se ambos não tivessem rompido. O atual governador foi eleito senador em 2002 com o apoio de Garotinho e Rosinha. Havia transitado do PSDB para o PMDB.

Mas toda essa novela, apresentada aqui para indicar a complexidade do processo, não está na cabeça da maioria dos que vão às ruas. Eles se mobilizam contra a truculência policial, as milícias, os traficantes – três entidades que formam o Sistema Estadual de Insegurança Pública –, a crise na saúde, o fracasso educacional, a sujeição dos transportes coletivos ao interesse das empresas que os monopolizam, a orientação da política urbana pelas grandes empresas de construção imobiliária e pelas grandes empreiteiras de obras públicas, etc. E todas as quadrilhas que roubam e corrompem estribadas no funcionamento viciado dos serviços públicos.

Da lei e da ordem

O Globo agiu também em nome de uma divisa de “lei e ordem” que vem de longe, e foi isso que o levou a entrar em rota de colisão com um número considerável de leitores quando esses começaram a encher as caixas postais de jornalistas da casa com mensagens de descontentamento diante da maneira truculenta de apresentar a truculência (ver "Ainda há jornalistas em Berlim").

Não por acaso isso acontece depois das jornadas de junho e julho, cujo caráter de divisor de águas na vida brasileira muita gente boa e menos boa não captou até agora. Junho e julho talvez tenham apressado o “mea-culpa” de mentirinha do Globo que acompanhou a colocação na rede do acervo digital das edições do jornal.

Mas é certo que seus desdobramentos provocaram, nesse episódio das cartas à Redação, a primeira grande trombada visível, escandalosa (há trombadas cotidianas, mais difíceis de perceber) com os “Princípios Editoriais” publicados pelas empresas do grupo em agosto de 2011.

Respeito, consideração, cortesia?

Em vez de tratar os missivistas “com respeito, consideração e cortesia, em todas as formas de interação com os jornalistas e seus veículos: seja como consumidor da informação publicada, seja como fonte dela”, os dirigentes da Redação e alguns jornalistas que os apoiaram nisso resolveram reagir sem respeito, sem consideração e sem cortesia. Alguém disse que só escrevem cartas para jornais “desocupados ou psicopatas”. E recebeu apoio.

A equipe do jornal se dividiu. Não entre “jovens” e “velhos”, como bobamente pretenderam alguns (os “jovens” seriam democratas e os “velhos”, autoritários), mas basicamente entre quem apoia a censura às cartas incômodas e quem acha necessário ouvir essas vozes. Se cartas são obras de “psicopatas ou desocupados”, o jornal insulta a inteligência dos outros leitores dando uma página inteira para elas, todo dia.

Órfãos do JB

Uma parte dos leitores do Globo, de modo algum desprezível, é de órfãos do Jornal do Brasil. Antigos leitores do JB ou pessoas que chegaram depois, mas imbuídas de princípios democráticos que fizeram parte da cultura do extinto diário. A direção atual da Redação do Globo talvez não tenha percebido essa circunstância. Durante a gestão anterior, chefiada por Rodolfo Fernandes (1962-2011), isso teria sido impossível, porque Rodolfo se formou como jornalista no Jornal do Brasil.

Não ter concorrente é um problema em mais de um sentido. Numa formulação mais sofisticada, a ausência de rival faz com que o jornal passe a se autorreferenciar, perdendo o metro da corrida para fazer mais rápido e melhor. Sem régua e compasso, pode meter os pés pelas mãos e não ouvirá vaias da consciência profissional de seus colaboradores.

Do ponto de vista prático, acontece o seguinte: quando há mais de uma opção, o insatisfeito se muda para o concorrente. Não havendo tal possibilidade, só resta ao leitor bater às portas do único que existe para reclamar. É um monopólio. Como a Light, o Metrô, a Central do Brasil, a Cedae, etc.

Já foi diferente

O Globo nasceu crítico. A imagem abaixo é da edição de 15 de novembro de 1926, data da posse de Washington Luís na presidência da República.

O jornal tinha então muitos concorrentes. Alguns bem parrudos, como Correio da Manhã, O Jornal, O País, Jornal do Commercio e, em especial A Noite, de onde saíra Irineu Marinho para fundá-lo.

Irineu Marinho se desentendera com os sócios quando eles se tornaram governistas, o que significava apoiar Artur Bernardes (1922-1926), que recorreu ao estado de sítio, à censura, à violência policial, à tortura. O Globo circulou pela primeira vez em 29 de julho de 1925 e Irineu morreu em 21 de agosto. Sua saúde não se restabelecera desde sua prisão na Ilha das Cobras, entre julho e novembro de 1924, sob a acusação de colaborar com o movimento tenentista (informações em Irineu Marinho, Imprensa e Cidade, de Maria Alice Rezende de Carvalho, Globo Livros, 2012)

Nesse dia de 1926, quando Bernardes passou o poder, o jornal se sentiu livre para exercer a crítica, e o fez duramente. A página parcialmente reproduzida acima é a oitava e última de um caderno inteiro dedicado ao balanço do governo.

Elogio aos rebeldes

O artigo critica a censura, exercida num “ambiente de pavor”, pavor que fazia Bernardes mandar dizer que estava doente toda vez que “se anunciava a vinda de um personagem importante, que devia exigir a presença do presidente”. Segundo o Globo, o presidente vivia aterrorizado pela possibilidade de sofrer um atentado. Por isso “era o presidente que FOI, e nunca o presidente que VAI. O noticiário só dava conta dos lugares em que ele havia estado (…)”.

O jornal elogia os insubmissos:

“Num regime de ódios, de violências, de perseguições cruéis, sempre surgiam espíritos decididos, almas fortes, corações generosos, que se esforçavam por arrancar o país às unhas da ditadura e da venalidade. As tentativas, frustradas pela peita, pelo suborno, pela compra de traidores, enchiam o presidente Bernardes de temores trágicos. Só assim se explicam os castigos ignóbeis a que eram sujeitos os chamados presos políticos”.

Quem te viu e quem te vê. Se se deitasse antropomorfizado num divã de psicanalista, o Globo haveria, quem sabe, de se perguntar agora: “Quando mudei? Por quê?” Faz muito, muito tempo.

Malufada custou caro

O Jornal do Brasil fez sua primeira entrada no corredor da morte quando malufou, no início dos anos 1980. Em troca de dinheiro para pagar dívidas alimentadas por seus próprios donos, engajou-se na campanha de Paulo Maluf pela conquista da presidência da República.

Dá para imaginar a revolta dos leitores. O repúdio foi explicitado no seguinte fato: dos cerca de 100 mil assinantes, 30 mil cancelaram suas assinaturas e, desses, 9 mil fizeram questão de dizer a razão (informações dadas à época pelo jornalista Flávio Pinheiro, hoje superintendente executivo do Instituto Moreira Salles).

O jornal seria tirado a partir do início de 1985 do abismo jornalístico por Marcos Sá Corrêa e um grupo de colaboradores de mente aberta, entre os quais Flávio Pinheiro, mas a empresa não tinha mais salvação e voltou para o corredor da morte, onde foi comprada pelo empresário Nelson Tanure. Parou de circular em setembro de 2010.

O Globo não corre o risco de resvalar para uma armadilha empresarial semelhante. Há muito é gerido com relativo bom senso negocial. Mas jornais não são empresas como uma fábrica de doces ou uma loja de sapatos. Cumprem uma função pública. Algo que os leitores não ignoram. Algo de que, na verdade, estão cada vez mais conscientes. Que o digam as cartas para a Redação.