Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Fim de uma era

A cena é inesquecível: Jean Seberg, cabelo à la garçonne, camiseta do Herald Tribune, ao lado de Jean-Paul Belmondo, nos Champs Elysées. Eram os anos 60, Jean-Luc Godard revolucionava o cinema com Acossado e sua personagem principal vendia, aos gritos, jornal nas ruas de Paris. O International Herald Tribune, a edição europeia do New York Times, era indispensável para a foto de americanos no terraço dos cafés parisienses, um rito de passagem inevitável para qualquer candidato a cidadão do mundo. Na terça-feira, pela primeira vez desde 1887, o Herald deixou de circular, sendo substituído pelo International New York Times, marca e título teoricamente mais adaptados ao mundo globalizado.

“Não chorem, não é a primeira mudança de nome, nos primeiros anos ele foi popularmente conhecido como Paris Herald. O DNA de um jornal é definido pela sua evolução”, sugerem os editores. Pode ser, mas palavras importam. O Trib, como era chamado pelos realmente íntimos, teve direito a um enterro de luxo. Saíram de seus arquivos para um caderno de despedida a foto de Andy Warhol lendo o jornal em Veneza, Martin Luther King com as páginas abertas durante um intervalo da cerimônia em que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964, o pianista Arthur Rubinstein, de chapéu de palha branco, lendo a manchete do “Homem na Lua”, Adolph Eichmann no momento de sua sentença em Israel, em 62, Fidel Castro no mais puro estilo revolucionário, em 57.

Padrão que ninguém mais consegue

Pelas 24 páginas de boas e más lembranças do século 20, a mais glamourosa talvez seja a da época em que Paris realmente era uma festa. Pelo menos para americanos, num autoexílio em busca do refinamento europeu. Na autobiográfica novela de Ernest Hemingway, O Sol nasce para todos, a primeira providência do alterego Jake Burns, ao voltar da guerra civil espanhola para Paris, foi – claro – comprar o Herald e acompanhá-lo com uma taça de vinho num café. Era a deliciosa e mítica fase em que Gertrude Stein pontificava em saraus na sua casa de Montparnasse, F. Scott Fitzgerald fazia festa e Art Buchwald, colunista de humor do jornal, discutia com Hemingway sobre o número de bloody marys tomados no bar do Ritz. Nunca correspondentes em Paris tiveram uma vida tão movimentada como nos tempos de Hemingway – ou, pelo menos, tão charmosamente reinventada.

Claro, nem tudo foi brilhante. Erros, como sempre, aconteceram e também foram marcantes. Num editorial de 1932, o Herald lamenta a falta de um movimento fascista em terras americanas. “A hora chegou para um partido fascista nascer nos EUA”, proclama. O terrível erro político foi corrigido já em 39: ao noticiar a invasão da Polônia pelos nazistas, o jornal chama o país de “primeira vítima do homem maluco”.

Segunda-feira (14/10) foi o dia da despedida, terça o de virar a página. Como o International New York Times fará a diferença num mundo saturado de informação? “Com sofisticação nas análises e uma apresentação das notícias num padrão que ninguém mais consegue”, diz sem modéstia Jill Abramson, a chefe de redação do New York Times, em entrevista ao Guardian.

Aposta no jornalismo de qualidade

É forte a presença internacional do grupo. Um terço dos seus 59 milhões de leitores mensais mora fora dos EUA, o que lhes dá o invejável título de “maior site de jornal no mundo”. Editado em Paris, Hong Kong e Nova York – e impresso em vários lugares do mundo, inclusive São Paulo –, o International New York Times herda a estrutura do Herald Tribune, uma operação de 126 anos, dos quais 35 em parceria com o Washington Post. A reformulação da edição internacional tem a mesma filosofia dos grandes jornais do mundo, incluindo O Globo: trabalhar como uma plataforma de produção de notícias e imagens, publicadas online ou em papel. Ou, como diz Abramson, trata-se da realização de uma longamente acalentada ambição, a de ter uma redação global, funcionando 24 horas no mundo.

A vida não anda fácil para jornais e jornalistas pelo mundo. Há muito demos adeus à zona de conforto. Fora as constantes ameaças à liberdade de imprensa, a vertiginosa mudança de hábitos trazida pela internet revolucionou a profissão e as empresas de comunicação. O Financial Times, outro gigante da mídia, anunciou semana passada o fim das edições regionais e a produção de um único jornal diário global. A reformulação tem como objetivo dar prioridade ao conteúdo digital, um movimento considerado vital para enfrentar a concorrência das mídias sociais e jornais só online. O desaparecimento do velho Herald simboliza um pouco o fim de uma época, o novo NYT internacional é anunciado como uma aposta no futuro de um jornalismo de qualidade. Boas falas, apostamos junto.

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Helena Celestino, Globo