“Imprensa britânica sob ameaça”, alertou há dias o New York Times. Não havia exagero naquele editorial. O governo de coalizão montado pelo primeiro-ministro David Cameron parece realmente empenhado em desafiar a longa tradição de liberdade e destemor da imprensa britânica, com o apoio de parlamentares conservadores e outros só no rótulo “liberais” e “democráticos”. Vista grossa para os abusos da Agência Nacional de Segurança (NSA) americana e dos serviços de inteligência britânicos, mas chumbo grosso para aqueles que há meses os denunciam publicamente – essa tem sido a tônica no Parlamento, que agendou para amanhã [segunda-feira, 25/11] a votação de medidas restritivas ao exercício de informar e colher informações, propostas pelos seus três líderes partidários: o conservador Cameron, o liberal-democrata Nick Clegg e o trabalhista Edward Miliband.
O controle da mídia não é mais uma obsessão exclusiva de regimes autoritários. Segundo sir Tim Berners-Lee, criador da internet e de uma fundação para medir os estragos da censura na grande infovia, 30% dos países por ela monitorados filtram ou bloqueiam o conteúdo político das mensagens em trânsito na rede. “Os governos querem destruir o que de melhor a internet nos proporcionou nos últimos tempos: as atividades agregativas e denunciativas das redes sociais”, queixou-se Berners-Lee ao site da BBC.
Ao contrário dos EUA, a Inglaterra não oferece garantias constitucionais à liberdade de imprensa. Daí a facilidade com que o Parlamento e autoridades policiais assediam, intimidam e ameaçam com processos o diário The Guardian, pela publicação dos documentos da NSA vazados por Edward Snowden e seu repasse para o New York Times e a revista alemã Der Spiegel, que até agora não sofreram pressões em seus países.
Além de estar na mira da Scotland Yard por ter-se recusado a entregar à polícia os discos rígidos com o material vazado, o editor do Guardian, Alan Rusbridger, foi intimado a depor a uma comissão parlamentar de inquérito, no mês que vem. Seus integrantes querem saber mais sobre os motivos que o levaram a abrigar as revelações sobre a xeretagem da NSA e sua linha auxiliar na Inglaterra, o GCHQ (Government Communication Headquarters), que Snowden e o WikiLeaks entregaram ao jornalista Glenn Greenwald. Rusbridger lhes dirá o que já sabem. E também o que fingem ignorar: que liberdade de expressão e liberdade de imprensa são direitos fundamentais em qualquer democracia, tão fundamentais quanto o direito de o público tomar conhecimento de que seus telefones e e-mails estão sendo controlados e invadidos por uma rede governamental de espionagem, de alcance mundial.
Horizonte sombrio
Se os parlamentares tentarem justificar o inquérito como “uma necessidade ditada pelo combate ao terrorismo” (a desculpa esfarrapada usada na detenção do brasileiro David Miranda, parceiro de Greenwald, no aeroporto de Heathrow, em agosto), Rusbridger poderá pedir-lhes que mencionem algum atentado ou complô terrorista planejado com base em informações secretas divulgadas pelo Guardian. E eles ficarão com a mesma cara de tacho das autoridades dos serviços de inteligência americano quando confrontadas com a mesma cobrança.
Também em agosto, como parte do arrastão antiterrorismo chancelado pelo premier britânico, o GCHQ enviou dois funcionários à redação do Guardian para verificar se Rusbridger cumpriria mesmo o acordo feito com as autoridades: destruir os discos rígidos com o papelório do WikiLeaks cobiçados pelo governo. O editor cumpriu o prometido, no porão do jornal.
O governo interpretou o trato como uma admissão de culpa. “Se Rusbridger aceitou destruir os arquivos é porque reconheceu o perigo que seu conteúdo representava para a segurança nacional”, raciocinou em voz alta um alto funcionário do serviço de inteligência. Se de fato inteligente, reconheceria de antemão a inutilidade daquele auto de fé eletrônico. Afinal, todo o conteúdo dos discos rígidos já havia sido despachado para o site de jornalismo independente ProPublica e para a redação do New York Times. Precavido, o Guardian passou a editar o material do WikiLeaks de sua redação nova-iorquina.
Na América, o Guardian não sofre os mesmos constrangimentos a que sua redação londrina tem sido submetida. Protegido pela Primeira Emenda da Constituição, só passaria a ter problemas se a legislação antiterror estabelecida pelo governo Bush e levada às penúltimas consequências por Obama lograsse o aparentemente impossível: tornar letra morta a liberdade de imprensa. Por ora, só há registros de ameaças à liberdade de expressão na internet, vigiada e devassada pela NSA, que, entre outras arbitrariedades, confiscou os registros telefônicos de jornalistas da Reuters e passou a infernizar a vida do correspondente da FoxNews em Washington, James Rosen, depois que ele vazou informações do serviço de inteligência sobre a Coreia do Norte.
Como o futuro da imprensa, dizem, está na internet, as perspectivas não são nada animadoras.
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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo