Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mensalão mineiro, um teste para a imprensa

Em 1985 o então presidente americano Ronald Reagan passou por uma intervenção cirúrgica que lhe arrancou um tumor de cólon. Indagado sobre a doença, ele respondeu alegremente: “Eu não tinha câncer. Alguma coisa em mim tinha câncer e essa coisa já foi removida”. Pelo quadro clínico da política brasileira em 2013, parece que o PSDB ensaia uma saída na mesma linha com relação ao julgamento do mensalão tucano (mensalão mineiro). “Mensalão, eu?”, arguirá o tal Partido da Social Democracia Brasileira, com litros de brilhantina a empinar-lhe o topete reluzente. “Eu não fiz mensalão nenhum. Alguma coisa em mim fez mensalão e essa coisa já foi extirpada.”

Se conseguirem retirar os réus das fileiras do partido, os tucanos terão confeccionado o penteado retórico com o qual tentarão afastar a sigla do tiroteio judicial que virá em 2014. Se a jogada der certo, o julgamento do mensalão tucano receberá no debate público o tratamento de um crime isolado, um erro isolado, um desvio de pessoas despreparadas. Sua história será despolitizada. Indivíduos serão punidos, sacrificados como párias. Assim, o partido ficará livre de qualquer suspeita e não será criticado na arena pública. Em resumo, se a tática reaganista for bem-sucedida, o mensalão tucano terá sido reduzido a um episódio puramente criminal, sem nexo algum com o hábito político e com a lógica partidária no Brasil. Do ponto de vista estritamente jurídico, isso não fará muita diferença (fará alguma, como já veremos, mas não muita). Já do ponto de vista político, teremos perdido mais uma oportunidade de entender melhor os meandros do submundo eleitoral que ainda dá as cartas no País.

Não que o mensalão mineiro seja um crime político. Não é, na exata medida em que os condenados pelo mensalão petista não são “presos políticos” (por favor). O mensalão mineiro (como o outro) é um ilícito penal, sem tirar nem pôr, mas é um ilícito penal praticado dentro de um contexto político. O topete retórico tenta arrancá-lo desse contexto, ou seja, tenta retirar da pauta o contexto político, cuja compreensão (em detalhes) é do mais alto interesse público.

Obsessões recíprocas

O grande beneficiário dessa manobra discursiva será o PSDB, como é óbvio. O grande prejudicado, porém, não é tão óbvio assim. O maior prejudicado não será o Partido dos Trabalhadores (PT), será o cidadão. Se a retórica reaganista prevalecer, o julgamento do mensalão tucano perderá destaque no noticiário e isso vai lesar o cidadão em seu direito à informação.

A esta altura, só quem pode reordenar a agenda é a imprensa. Apenas o jornalismo profissional dispõe, neste momento, dos instrumentos institucionais necessários para impedir que o contexto se perca no vazio e para promover a informação crítica, sem a qual os cidadãos terão mais dificuldade para refletir sobre as formas de aperfeiçoar a estrutura partidária na qual crimes dessa ordem vêm ocorrendo, em partidos tão diferentes quanto PT e PSDB.

Não, ninguém aqui vai dizer que a culpa desse desvio peculiar, que está à beira de se converter num novo tipo penal – o mensalão –, é do sistema partidário ou da Lei Eleitoral. A culpa é mesmo de gente de carne e osso, que praticou crimes comuns, tipificados na legislação em vigor. Isto posto, não podemos perder de vista que esses crimes denotam vícios sistêmicos – e esses vícios sistêmicos podem e devem ser sistemicamente enfrentados e resolvidos. Aí é que entra a imprensa.

Investigar e tornar públicos os vínculos entre os crimes comuns e os vícios sistêmicos não compete ao Poder Judiciário, mas à imprensa. Ao Judiciário cabe julgar os crimes a partir dos elementos que já constam do processo. Por isso é que se pode dizer que o debate público, a essa altura, se terá algum peso nas decisões dos juízes, não terá peso determinante; o que a imprensa vai publicar ou vai deixar de publicar terá alguma influência, é certo, mas não mudará o que já está nos autos e, nessa medida, não vai fazer uma diferença tão grande assim. Mas para o cidadão e para a sociedade, aí, sim, a diferença será absoluta. Se a imprensa não cuidar de investigar os nexos entre a estrutura política e o desvio de dinheiro público, ninguém mais terá condição de assumir essa tarefa. A opinião pública sairá perdendo.

Na cobertura do mensalão do PT, o jornalismo profissional atuou com acerto porque o fez com persistência. É verdade que a estratégia descabelada dos petistas, com aquela pulsão incontida de dizer que não tinha havido crime algum e que tudo não passava de um complô da “mídia conservadora”, praticamente impôs aos repórteres a obrigação de desmontar a farsa (não do julgamento, mas do discurso governista). Em grande parte, a obsessão da imprensa com o tema do mensalão petista foi também provocada pela obsessão dos governistas em dizer que o julgamento era fajuto, era um golpe, era um rito de exceção. Diante disso, ou a imprensa fazia a sua parte ou a Nação seria tragada por um embuste de consequências trágicas.

Imprensa desafiada

Agora o quadro não é tão diferente, embora os sinais pareçam todos invertidos. Onde o PT queria politizar o julgamento, o PSDB quer despolitizar o contexto do crime. Onde o PT procurou idolatrar os acusados como se fossem heróis da classe operária, o PSDB procura rifar os seus, como se nunca os tivesse visto mais gordos. Onde o PT enxergava um complô das elites para desestabilizar o presidente da República, o PSDB enxerga uma intercorrência policial aleatória, que não tem nada que ver com nada. Num caso e no outro, apesar dos sinais invertidos, os dois partidos tentam desinformar a sociedade.

Logo, assim como se sentiu intimada a esclarecer as coisas no mensalão do PT, a imprensa está desafiada a cobrir com o mesmo rigor o mensalão tucano. De quebra, está convocada a provar que prima pelo apartidarismo e que não se deixa encantar por topetes retóricos.

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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM