O Estado de S.Paulo publicou na sexta-feira (29/11) um caderno especial de Economia & Negócios chamado “Expansão Imobiliária”. São 22 páginas, das quais 12 e meia de “papel pintado”, ou, se preferirem, anúncios imobiliários. Nas nove páginas de texto propriamente dito (a capa do caderno é só foto e títulos), usa-se a linguagem “do mercado”. Título e subtítulo da matéria de abertura (página H14) dão o tom geral:
“Nova São Paulo seguirá transporte e áreas de intervenção. Com o conceito de aproximar as novas moradias dos eixos comerciais, seja pelo esgotamento do paulistano de enfrentar o trânsito, seja por incentivo oficial, os corredores de transporte público e as operações urbanas passam a ser, cada vez mais, indutores do desenvolvimento do mercado de imóveis da capital paulista, com efeitos sobre cidades vizinhas do ABCD.”
Não se encontra nas reportagens o menor sinal de crítica aos rumos tomados pelo desenvolvimento da cidade. Fala-se de uma “Nova Berrini” sem menção ao desastre que é a “velha” Berrini, uma avenida sem calçadas e inapelavelmente congestionada na chegada aos escritórios e na saída. Também se ignora o grau de poluição do vizinho Rio Pinheiros, fonte de mau cheiro e fábrica de mosquitos.
Cita-se como absolutamente natural o fato de mais de 10% dos imóveis da cidade permanecerem vazios. A única consideração é mercantil: “Empresários e analistas costumam considerar o mercado equilibrado quando a vacância flutua entre 12% e 15%”. Abaixo disso, os preços sobem. Acima, caem.
Verdades incômodas
Apenas numa entrevista aparecem certas verdades incômodas. É de Mauro Peixoto de Oliveira, consultor da Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp). Ele não se peja de dizer, dourando a pílula, que “áreas do Tatuapé e da Mooca têm vocação para Itaim”, mas compensa essa marquetada ao dizer, sem medir palavras: “Um monotrilho é mais barato, mas é degradante, é um minhocão com trem” – o que põe em xeque algumas das virtudes de localização de empreendimentos destacadas pelo conjunto de reportagens.
Oliveira também reconhece que “uma cidade como São Paulo, com mais de 10 milhões de habitantes, em qualquer lugar do mundo, é um caos. Uma região metropolitana de 22 milhões de habitantes é uma doença (…)”. Recomenda o fortalecimento de cidades médias. Provavelmente, o consultor sabe que o Brasil é o quarto país do mundo com mais cidades de mais de um milhão de habitantes (tem 13), após China, Índia e Indonésia.
“Origem Tatuapé”
Uma das reportagens, sobre a Zona Leste, subscreve truque comum das imobiliárias, que é falsear a localização do imóvel para cobrar mais pelo metro quadrado construído: “A Helbor vai lançar o Origem Tatuapé, na Avenida Celso Garcia, na Vila Carrão”. Fica no Tatuapé ou na Vila Carrão? Nem um, nem outro. Fica no vizinho Belenzinho. Talvez o autor do texto tenha procurado de alguma maneira indicar que o nome é uma fraude (a menos que se desconsidere a divisa entre Belenzinho e Tatuapé, a nada acanhada Avenida Salim Farah Maluf), mas trocou o oeste (Belém) pelo sudeste (Carrão).
O discurso imobiliário é imobilizador, numa época em que a “mobilidade urbana” é tão decantada (e tão pouco atendida). Numa das reportagens, cujo título é também citação de uma fala do consultor Oliveira (“Diadema se tornou extensão do Brooklin”), são fornecidos dados que explicam a paralisia progressiva do trânsito (trata-se de uma progressão lenta, iniciada provavelmente há 40 anos; o nó completo foi evitado em 1997 com a introdução do rodízio, mas outro nó está perto da maturidade). Na região do ABCD, nos últimos cinco anos, 60,2 mil metros quadros de terrenos hospedam lançamentos imobiliários cuja área total é de 447 mil metros quadrados.
Verticalização sem rumo
A verticalização, em determinadas situações, pode ser uma solução urbana vantajosa, não só a rentabilização do investimento na compra de terrenos. Mas é difícil achar entre os que pensam a cidade alguém que aplauda a maneira como ela vem se fazendo. E é fácil encontrar quem a critique. No mesmo dia em que foi publicado o caderno do Estadão, o Valor trouxe entrevista com Amyr Klink em que o navegador e escritor condena o padrão de verticalização seguido em São Paulo (“O mar como caminho“, “EU & Fim de semana”, 29/11)):
“A gente tem que parar de verticalizar. Fui ver algumas cidades africanas com mais de 1 milhão de habitantes. Não há processo de verticalização, mas um núcleo central ultraverticalizado. A cidade cresce e cria um sistema que escoa a mobilidade urbana. Estamos adotando um modelo de mobilidade em que se forma uma armadilha. Ao verticalizar o Tatuapé, Carapicuíba, Lapa, estamos criando megacentros urbanos em volta de uma megacidade. Enquanto isso, a ciência de gestão pública só se preocupa em amenizar problemas de mobilidade (…).”
Outra cidade, invisível
Não existe no caderno especial do Estadão qualquer referência a favelas, cortiços e outros tipos de “habitações subnormais” (nas quais viveriam cerca de 3 milhões de pessoas). Entretanto, no mesmo jornal, duas semanas antes, problemas da urbanização sem planejamento tinham sido colocados (“SP e Rio: o gargalo das megacidades“, 13/11):
“A concentração econômica e demográfica no Sudeste fez surgir em São Paulo e no Rio de Janeiro as primeiras megacidades do País, que juntas somam 42 milhões de habitantes – população maior que a do Canadá. Saber planejar e gerenciar de forma integrada o desenvolvimento dessas manchas urbanas, para atacar gargalos como congestionamentos e a proliferação de favelas, é um desafio que interessa a toda economia nacional.”
Cabe perguntar se, nesse contexto, é possível ignorar certas razões das explosões populares de junho-julho, como nas respostas que os partidos políticos deram nos meses seguintes, arrastando para o ramerrame uma cobertura de política que tem dificuldade para ligar os pontos e enxergar a figura.