Em maio, uma sequência de tiroteios no “pacificado” morro do Alemão atrasa o início da corrida “Desafio da Paz”; em julho, no mesmo local, a sede do grupo AfroReggae é incendiada, e na Rocinha desaparece o pedreiro Amarildo, que se tornaria símbolo da violência policial das UPPs; em outubro, um tiroteio no Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, deixa um morto e um ferido; em novembro, mais tiroteios na Rocinha e no Alemão; agora, no início de dezembro, as cenas se repetem no morro de São Carlos e, novamente, na Rocinha.
É nesse contexto que O Globo decide retomar sua campanha em favor das UPPs, com uma série de reportagens iniciada no domingo (8/12). Os editores podem ter considerado o momento oportuno, uma forma de compensar o noticiário negativo dos últimos meses, especialmente das últimas semanas. Os leitores, pelo contrário, podem se considerar ofendidos na sua inteligência, a começar pela manchete escandalosamente mistificadora que abre a série: “UPPs têm a menor taxa de homicídios do Brasil”.
“Apenas para ilustrar”
As reportagens estavam fechadas a comentários no site, mas na página do jornal no Facebook as críticas se multiplicaram, entre irônicas e agressivas: “quanto o governo pagou por essa capa?”; “vocês têm redatores ou marqueteiros desenvolvendo as matérias???”; “começou a campanha eleitoral”; “jornal ridículo, acha que as pessoas são idiotas!!!”; “estão no bolso dos poderes estadual e municipal do RJ”; “claro que as UPPs têm a menor taxa, eles somem com os corpos de suas vítimas! Faz-me RIR!”; “bonito é comparar o índice das UPPs com o das cidades e estados! rsrsrsrs”.
Pois é. Independentemente da credibilidade das estatísticas, o absurdo da comparação entre os índices das favelas “pacificadas” e o de cidades e estados é envergonhadamente reconhecido no texto: “Para dar uma ideia, porque do ponto de vista estritamente técnico as comparações precisam ser entre universos semelhantes…”, “apenas para ilustrar, porque não são coisas semelhantes…”. (Os grifos são meus.)
É o mesmo que dizer: perdão, leitores, enganamos você.
Mas o recado é apenas para quem se dispuser a ler as páginas internas, porque na chamada de capa não há qualquer ressalva.
Também perdida no meio do texto está a informação de que os números abrangem apenas as UPPs mais antigas, o que deixa de fora favelas como Rocinha e Alemão, de onde vêm os mais frequentes registros de ocorrências policiais noticiados pelo próprio jornal.
A permanência do Estado policial
Por isso, seria perda de tempo debruçar-se sobre a qualidade das estatísticas apresentadas como sustentação da manchete. Mas a iniciativa dessa série merece análise por alguns motivos além da óbvia identificação de propaganda.
Em primeiro lugar: a série é anunciada, na véspera, com uma remissão a outra publicada pelo jornal em 2007, “Os brasileiros que ainda vivem na ditadura”, que recebeu vários prêmios e mostrava, num trabalho de equipe que durou quatro meses, a situação dos moradores de favelas submetidos à violência cotidiana de traficantes, milicianos e policiais. Esta série rendeu outras duas: “Favela $/A”, em 2008, sobre os negócios que prosperam na ilegalidade, e “Democracia nas Favelas”, em 2009, sobre o início das UPPs.
O governo era o mesmo, a orientação editorial do jornal também, mas isso não impediu, já na abertura da série sobre essa incipiente “democracia”, o alerta para a substituição do mal nomeado “Estado paralelo” do tráfico – mal nomeado porque, evidentemente, não se tratava de um “Estado” – por um “Estado policial”. Na reportagem, várias referências a abusos policiais contra moradores.
Uma nova série sobre UPPs – uma série jornalística, não publicitária – poderia perfeitamente avançar nessa questão: quatro anos depois, a quantas anda esse “Estado policial”?
O recado do repórter
A julgar pelos “muitos Amarildos” – que, aliás, mereceram reportagem de página inteira no Globo em agosto –, o Estado policial enraizou-se. O que não é surpresa, se pensarmos no papel histórico da polícia na vigilância e repressão aos marginalizados, e isto é algo que deveria estar permanentemente na cabeça dos jornalistas: como pensar em policiamento comunitário, “de proximidade”, se o pobre é visto como um criminoso em potencial e, por isso mesmo, inversamente, também tende a ver o policial como um algoz?
A propósito, espremida numa coluna depois das três generosas páginas abertas para esta nova série, uma pequena matéria anotava “5 baleados em 12 horas” na Rocinha, onde tiroteios voltaram a ser frequentes desde novembro. O autor da reportagem, por sinal, tomou a iniciativa de publicar, em seu mural no Facebook, as informações relativas a um jovem morador que escapou de se transformar num novo “Amarildo”, ao ser abordado por cinco PMs que o levaram para um beco. Leonardo Vieira tomou a providência para o caso de não conseguir registrar a história na íntegra no jornal, e para que pudéssemos refletir um pouco mais “sobre essa política de UPPs”. Informou inclusive o número da ocorrência.
De fato, a história saiu acanhada, mas mais de um recado foi dado nesse episódio, para quem não se limita às páginas do jornal.
Contradições e outras pautas
A atual série marqueteira, aliás, parece destinada a conviver com essas contradições: também na segunda-feira (9/12), na sequência de reportagem sobre os prósperos negócios dos “empreendedores” nas áreas “pacificadas”, o jornal noticia o ataque a policiais da UPP da Cidade de Deus.
Mas as contradições podem ser notadas mesmo nas primeiras reportagens, entre as manchetes laudatórias e os textos, nos quais os moradores criticam a atuação da polícia e demonstram ceticismo diante do futuro.
Se o jornal pretendesse fazer jornalismo, poderia atentar para os desdobramentos da entrevista com o coordenador das UPPs (ver aqui), publicada no início de dezembro. Foi logo após um confronto no morro do São Carlos, no Estácio, que resultou em um morto e um ferido. O coronel dizia que, “em alguns momentos”, esses confrontos eram inevitáveis. Que não se pode acabar com o tráfico por decreto e que “a venda de drogas só aumenta, no Brasil e no mundo”.
Não seria um bom gancho para uma série de reportagens que discutisse a legalização das drogas, para acabar com a violência que marca toda atividade ilegal?
(A matéria com o coronel foi destacada no site, mas saiu resumida na edição impressa, no pé do texto que abria com o discurso do governador na inauguração de mais uma UPP.)
Coincidência irônica: no domingo em que O Globo iniciava sua série de propaganda, a Folha de S.Paulo publicava ampla foto de capa e página dupla no caderno “Cotidiano” sobre “os novos Amarildos” (ver aqui), que, indiretamente, reitera a permanência do Estado policial.
Na quarta-feira (4/12), neste Observatório, Luciano Martins Costa criticava a cobertura dos jornais paulistas às suspeitas sobre obras do metrô e serviços de trens metropolitanos. Começava assim: “Quer se informar melhor sobre a corrupção em seu estado? Leia um jornal de outro estado” (ver aqui).
No caso das UPPs, pelo visto, cabe o mesmo raciocínio.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)