Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fazer rir é uma virtude

Em Brasília, 11 da manhã. Na Praça dos Três Poderes, o sol implacável produz uma sombra dura, feia de ver na TV. Fernando Meirelles, meu parceiro na reportagem, tenta resolver o pepino apertando o botão da macro na câmera, um recurso que permite fazer o foco a poucos centímetros da lente. Ele vira o visor para eu poder me ver. Estou com a famosa “cara de colher”, arredondada e deformada, como a arquitetura espacial de Oscar Niemeyer que reina ao fundo sobre o cerrado goiano. O feio vira engraçado.

Com o nariz praticamente colado no vidro da lente, inicio a gravação com um trecho do verbete “Política” do Dicionário Filosófico, de Voltaire, escrito em 1764.

 – Alô, senhores telespectadores, novamente com vocês o seu repórter Ernesto Varela… A política dos homens consiste em tentar se igualar aos animais, a quem a natureza deu alimentação, vestuário e moradia. Hoje, aqui em Brasília, eu vou falar com brasileiros que estão no poder e com os que querem chegar ao poder…

É setembro de 1985. A ditadura dá os últimos suspiros. Com o fracasso da aprovação de eleições diretas para presidente, os políticos disputam nos bastidores dos palácios a sucessão do general João Baptista Figueiredo. Este, o último da sequência de militares a ocupar a Presidência da República, não conseguiu emplacar o nome do candidato preferido dele:o gaúcho Mário Andreazza. Quem conquistou, por insistência, o direito de representar o PDS – partido de apoio ao governo militar – foi Paulo Maluf. Engenheiro de formação, o empresário paulista virou político por apadrinhamento de Arthur da Costa e Silva, outro general-presidente da turma do golpe de 1964, de quem era amigo de jogar baralho.

Fogo amigo

Nessa manhã, um andar inteiro do Hotel San Marco está ocupado por assessores, cabos eleitorais e puxa-sacos de Maluf. O candidato se prepara para receber a imprensa sob bombardeio de fogo amigo. Antigos aliados políticos da ditadura, como José Sarney e Antônio Carlos Magalhães, estão deixando o barco em direção à maré favorável do candidato da oposição, pero no mucho, Tancredo Neves. A temperatura do dia subiu ainda mais depois da publicação de uma singela declaração do cacique baiano ACM justificando a razão de não apoiar Maluf: porque “é um ladrão”.

A caminho do San Marco, Fernando e eu fazemos uma paradinha estratégica na padaria da rodoviária. O motivo é nobre: hoje, 3 de setembro, é aniversário de Paulo Maluf. Escolhemos no capricho um bolo bem colorido da vitrine para o doutor Paulo apagar suas bem vividas 54 velinhas.

A coletiva é aquela guerra de sempre. Repórteres movimentam os microfones para lá e para cá tentando fisgar alguma declaração bombástica do entrevistado que é liso como um lambari. Estou acuado atrás do emaranhado de cabos, fotógrafos e repórteres. De repente, numa brecha, consigo deslizar o bolo sobre a bancada onde entrevistado e entrevistadores se digladiam. Os coleguinhas e o próprio Maluf se calam surpresos com a aparição do objeto decorado com glacê azul que destoa redondamente da cena. São os três segundos mais constrangedores que eu já vivi. Ou melhor, em matéria de constrangimento, os minutos seguintes ganham de lavada. Eu puxo um “Parabéns a você, nesta data querida…” Uma jornalista magrela de meia-idade rosna de raiva na minha orelha, disparando perguntas sem esperar pela resposta: De que emissora é você? Por que trouxe esse bolo? Você é do PDS?

A sequência de constrangimentos é crescente. Talvez movidos por hábito de infância, os profissionais da notícia abaixam os microfones e entoam um “Parabéns a Você” lúgubre para o candidato da ditadura, visivelmente contra a vontade deles. Maluf dá uma gargalhada, agradece e tenta sair de fininho. Puxo o candidato pelo paletó e imploro por uma entrevista exclusiva. “Exclusiva não, só uma pergunta”, responde ele, lépido como sempre. Imploro, faço cara de choro: “Só uma é muito pouco, candidato!” Ele eleva a voz com seu sotaque característico e assertividade de um feirante de Istambul: “Exclusivo, exclusivo, exclusivo… Só uma pergunta, só uma pergunta… E faça logo!” Sem opção, disparo a pergunta que representa a dúvida cruel de toda uma nação: “Deputado, é verdade que o senhor é um ladrão?” Ele congela, me fuzila com os olhos e sai sem responder.

Entre bom senso e nonsense

O repórter ficcional Ernesto Varela nasceu em 1983, sem nenhum aviso dos céus. O anjo torto me colocou os óculos vermelhos na cara e um microfone na mão e disse: “Vai, Tas, ser gauche na vida, misturar o que não deve, humor e jornalismo”. Depois da pequena TV Gazeta, onde estreei, passei pelas principais empresas de comunicação do país. Hoje, na cadeira central do CQC, na Band, ainda me surpreendo com as possibilidades infinitas e preciosas dessa mistura improvável.

Enquanto o jornalismo busca sem descanso o equilíbrio e a precisão, o humor é a celebração do improviso e do tombo desconcertante. O jornalista é um buscador do bom senso, o humorista do nonsense. Por que naturezas aparentemente incongruentes resultam numa comunicação tão eficiente, que tem conquistado a atenção das recentes gerações? Eu não tenho a resposta para a pergunta, mas venho colecionando algumas pistas.

Desde a primeira temporada do CQC, em 2008, guardo com disciplina de soldado prussiano os comentários dos telespectadores via redes sociais. É importante aqui abrir um parêntese: nunca antes na história desse veículo – a TV – pudemos ouvir o que o cara de casa tem a dizer. Muita gente boa que faz TV até hoje prefere não ouvir. Eu, ao contrário, coleciono tudo o que o “da poltrona” fala sobre o CQC, sobre mim ou minhas atividades profissionais. Fecho o parêntese.

Certo tipo de comentário frequente começou a me chamar a atenção ainda no início do projeto. Ele pode ser resumido num post de Isabela Santos, publicado no Twitter, durante o programa no dia 7 de setembro de 2009: “Não gosto muito de jornal, depois que o CQC começou a mostrar os fatos do Brasil de forma diferente, voltei a me informar mais!”

Primeira informação relevante: tem gente vendo o CQC como um programa jornalístico, como fonte primária de informação. Segunda: o que atrai nossa jovem telespectadora é que mostramos os fatos de maneira diferente. Diferente como? Misturando humor e jornalismo. Terceira: isso faz com que ela volte a se interessar pelo noticiário por meio de outras fontes de informação. Ufa, que alívio!

Nunca defendi, nem defendo aqui, a tese de que misturar humor e jornalismo seja a melhor maneira de contar uma história. Na verdade, devo confessar que, quando iniciei a história do Ernesto Varela, com minha turminha lá nos anos 80, ninguém tinha pretensão de fazer humor nem jornalismo. Nossa ambição era muito maior: revolucionar a televisão do terceiro milênio! Tal meta estava escrita com letras garrafais num livrão preto que servia como nosso diário coletivo.

Uma ilha na mão

A Olhar Eletrônico Vídeo, nossa razão social, já tinha papel timbrado, cozinha comunitária, prática matinal de tai chi chuan e até gente morando junto em um dos quartos da casa que servia de sede da empresa. Éramos universitários recém-formados ou desistentes do diploma, entre os 18 e os 20 e poucos anos, oriundos de cantos diversos: arquitetos, psicólogos, atores, engenheiros, jornalistas, fotógrafos e até gente do curso recém-fundado de Rádio e TV. Em um dos cômodos, em meio a muita coisa hippie e “alternativa” – palavra muito valorizada na época –, ficavam as armas de guerra letais com a quais preparávamos a nossa revolução: a câmera portátil e a ilha de edição.

É difícil hoje dar a dimensão da importância de uma câmera de vídeo e uma ilha de edição na mão de uma molecada no início de anos 80. Hoje, qualquer celular tem isso dentro. Até então, quem detinha o privilégio da posse das primeiras câmeras portáteis com gravadores de fita U-matic e de aparelhos para editar as imagens eram as emissoras de TV. E mais ninguém.

Antes de humor ou jornalismo, o interesse primordial da Olhar Eletrônico era explorar novas linguagens para contar nossas próprias histórias usando os recursos da manipulação eletrônica de imagens. Era uma forma muito mais ágil e divertida que a utilizada pelo pessoal do cinema, que observava nosso entusiasmo com um olhar torto e desconfiado. Particularmente, a ilha de edição representava um cruzamento sexy entre duas máquinas que eu utilizava muito na época: a calculadora (cursava engenharia simultaneamente com jornalismo) e o videogame. Foi amor à primeira vista.

Na Olhar, todo mundo fazia de tudo: da direção da Kombi à direção do programa na TV, passando pela fotografia, edição, texto e limpeza da cozinha. Curiosamente, a única tarefa que ninguém encarava bem era aparecer na frente da câmera. Por isso, na função havia um revezamento como nas peladas quando ninguém quer ficar mofando no gol.

Repórter ingênuo

Em uma das minhas vezes de ser o “goleiro”, surgiu o Varela. Chovia na cidade de Santos e não havia o que fazer até a hora de gravar o show de Itamar Assumpção, nossa missão principal na cidade. Na praia, um relógio público quebrado mostrava a temperatura de 68 graus. Diante da imagem inusitada, fui para a frente da câmera e usei uma voz diferente da minha, pausada, um modo propositalmente desajeitado para disfarçar a timidez e… Pimba! Surgiu no vídeo uma figura bastante diferente de mim. O pessoal riu e foi um grande alívio. Era melhor ser outro do que eu mesmo diante da máquina cruel de destruir espontaneidade chamada câmera de TV.

Voltamos para São Paulo e a brincadeira ingênua virou um quadro de humor do programa. Toniko Melo, o câmera e meu parceiro na brincadeira, colou uma vinheta com letras nervosas: “Santos Urgente!” e uma trilha sonora vibrante de breaking news do tipo “Plantão” da Globo. O ar de credibilidade jornalística era imediatamente quebrado pelo repórter ingênuo diante do relógio quebrado na praia.

– Estranha variação climática na cidade de Santos: 68 graus!

Nos meus estudos de formação (ou deformação?) como comunicador, virei devoto de uma trinca de pensadores que geralmente não estão no currículo das escolas de jornalismo: Bergson, Freud e Nietzsche. O primeiro diz algo extremamente vasto e importante: não há comicidade fora do humano. Ou seja, ninguém acha graça numa paisagem ou num animal – a não ser que reconheça neles alguma expressão humana. Em seu ensaio O Riso (Martins, 2001), o francês Henri Bergson ainda lança uma definição preciosa sobre o significado da risada: o contato entre inteligências. Para ele, o riso sinaliza o instante exato quando entendemos alguma coisa de um jeito como nunca havíamos pensado antes. Graças ao Bergson, aprendi que a risada, o hahaha, é o ruído da ficha caindo. Ahhhh… Entendi!!!

Com sua lâmina afiada, Sigmund Freud fez uma anatomia preciosa do humor em seu livro Jokes and Their Relation to the Unconscious (‘Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente’ faz parte da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1980, volume 8). O mestre da psicanálise valoriza humoristas como agentes sociais. Em poucas linhas, escreve o que seriam, segundo ele, os dois únicos objetivos do humor: a sátira, que serve ao propósito de crítica ao poder, e a piada obscena, que serve para a exposição do sujeito criticado. E completa com precisão: é desnecessário teorizar sobre limites ou outras metas para o humor, já que o prazer proporcionado pela graça já é suficiente para justificar o trabalho do comediante.

Se esse pequeno livro de Freud fosse mais conhecido, creio que muita tinta seria economizada nos rasos e chatíssimos debates sobre “os limites do humor” que infestaram o Brasil nos anos recentes. Desde a Idade Média, sabe-se que a arte do bobo da corte é criticar o rei sem que este perceba, ou, caso perceba, o prazer da diversão o desestimule a cortar a cabeça do bufão. Está na hora de a lição de Freud ser assimilada.

O humorista é um agente de saúde com uma função social: nos lembrar de que somos precários e imperfeitos. Se muita gente insiste em querer viver em um mundo perfeitinho, problema deles. O comediante não pode virar um chato resmungão, assumindo o papel confortável de vítima desse sistema doente. Deve se livrar dessa cilada com a sua arte: encantando, criticando e dando um nó na cabeça do rei com humor afiado.

Já Friedrich Nietzsche, o filósofo alemão, desce o seu vigoroso martelo numa caixa de marimbondos ainda mais polêmicos e perigosos. Para ele, o que chamamos de “verdade” é apenas um garantidor do convívio social, uma arma de domesticação da massa. Segundo Nietzsche, a origem da palavra verdade é enganosa e foi criada como ferramenta de poder. Talvez por influência do alemão bigodudo, nunca me senti à vontade com a ideia de que jornalista publica a verdade sobre as coisas. Prefiro realidade e mesmo assim penso que deve ser um conceito relativizado e debatido até cientificamente. O que é a realidade? Isso que imaginamos captar com nossos olhos e audição precários? A realidade existe? Sou um daqueles que acreditam existir mais realidade em um filme de Fellini ou em um romance de Dostoiévski que em uma notícia de jornal.

Pecados mortais

Essa trinca de pensadores mais o meu amado iluminista Voltaire, um grande humorista, me ofereceram munição farta para cutucar os limites da realidade com a ficção, do humor com o jornalismo. Creio que no atrito desses mundos que aparentemente não se tocam surgem brechas para o exercício da dúvida e do olhar crítico, combustíveis essenciais e comuns a ambas as atividades: a do jornalista e a do humorista.

Agradeço a companhia de quem chegou até aqui neste longo texto e finalizo dizendo que o humor não é uma obrigação nem uma oposição ao jornalismo. Enquanto, para o comediante, o humor é uma virtude absolutamente necessária, para o jornalista, é apenas uma qualidade possível como a beleza. Assim como ninguém precisa ser o Brad Pitt para ser jornalista, também não precisa ser o Seinfield, o Woody Allen ou o Tiririca. Jornalista pode ser feio, sem graça, lindo ou hilário. Para ser jornalista ou humorista, a pessoa só não pode cometer dois pecados mortais: não saber reconhecer seus erros e não rir de si mesmo. O resto, enquanto houver diversão e descoberta, está valendo.

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Marcelo Tas é jornalista e âncora do CQC, na Rede Bandeirantes.