O primeiro impacto é o da denúncia: apartamentos doados pela Prefeitura do Rio para quem morava em áreas de risco em favelas, construídos pelo programa Minha Casa, Minha Vida, estão sendo vendidos a R$ 60 mil. Não que seja exatamente novidade, afinal não é de hoje que projetos assistencialistas são alvo de especulação, mas notícias assim sempre causam revolta, e esta virou manchete de O Dia (3/1, ver aqui).
Arranhando um pouco a superfície, é possível verificar que a questão não é tão simples assim. Há especulação, certamente, da mesma forma que há problemas burocráticos com o cadastramento dos candidatos ao benefício, e disputas que às vezes produzem tragédias como a que ocorreu no fim do ano em Vitória da Conquista, quando o suposto dono de uma das casas entregues em outubro pelo governo federal, mas que continuavam vazias, matou o jovem que havia ocupado o imóvel (ver aqui).
Mas há muito mais coisas envolvidas quando se trata de fornecer habitação para quem não tem, ou a perdeu num desabamento, ou mora precariamente em área de risco. De saída, valeria a pena reler as críticas da urbanista Raquel Rolnik à “pobreza arquitetônica e urbanística” do projeto habitacional Minha Casa, Minha Vida, na época do lançamento do programa, em 2009:
“(…) casa não é geladeira, não se produz em série. Moradia adequada é um lugar na cidade, um ponto a partir do qual se tem acesso a condições dignas, emprego, comércio, equipamentos sociais, a um espaço público de qualidade, à cultura. (…) Casa não é só quatro paredes e um teto” (íntegra aqui).
Além da denúncia
Tampouco as pessoas são objetos que podem ser “removidos” e “realocados”. Qualquer projeto assistencial de moradia teria de considerar as despesas que antes não existiam e passam a onerar o orçamento, a impossibilidade de fazer um puxadinho para montar uma oficina, uma tendinha ou qualquer outra atividade que garanta alguma renda, os hábitos e relações afetivas que se enraizaram e de repente se esgarçam.
A reportagem de O Dia indica brevemente essas questões: fala das espertezas para burlar a lei mas cita a despesa de gás e condomínio que pesa no bolso, reproduz o depoimento de um morador que não se adaptou ao conjunto habitacional e quer voltar para perto da família que ainda mora no morro, menciona o caso de uma família que vendeu o apartamento recebido em doação e retornou à favela onde morava para, com o dinheiro, abrir uma mercearia.
São arranhões na superfície da denúncia de fraude. Quantas reportagens mais densas poderiam surgir a partir daí?
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)