Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nascido para incomodar

“Le Canard Enchaîné” é um curioso anacronismo. É um semanário satírico, quase centenário, publicado em Paris, que circula às quartas-feiras. É irreverente, impertinente e atrevido. A tradução literal de seu nome é “O Pato Acorrentado”. Mas sugere algo mais. Desde o século XVII, um “canard” era na França uma publicação irregular, com notícias sensacionalistas ou de credibilidade duvidosa e também a própria notícia falsa.

“Le Canard Enchaîné” é um observador independente na imprensa francesa. Trata com humor o que outros jornais levam a sério. Recorre ao sarcasmo, à paródia. Seu mote é “A liberdade de imprensa se perde quando não se usa”, e o “Canard” nunca deixou de usá-la. É rara a edição em que não denuncia um escândalo ou alfineta um político importante. Segundo a revista alemã “Der Spiegel”, é a única publicação que os políticos franceses temem realmente. Anatole France disse que era o único jornal sério de sua época e o único que lia.

Tem apenas oito páginas de tamanho grande. É impresso em duas cores, preto e vermelho, em papel jornal. A apresentação gráfica é antiquada. É ilustrado com desenhos, mais comunicativos, opinativos e corrosivos que as fotografias – que não publica. Algumas seções atravessaram as décadas praticamente intactas. “La mare aux canards” (A lagoa dos patos), a mais antiga, criada em 1916, publica frases e fatos que seus autores prefiririam esquecer.

A redação do “Canard” é pequena, de 16 pessoas. Mais da metade não usa computador ou máquina de escrever. Prepara seus textos com caneta-tinteiro.

Num mundo crescentemente digital, o jornal pouco se interessa pela internet, embora tenha feito algumas concessões. No ano passado, abriu um site para ocupar o endereço que, alegou, escroques tentaram surrupiar. Mas não expõe seu conteúdo, apenas o fac-simile das primeiras páginas dos últimos números. “Nosso trabalho é informar e distrair nossos leitores com papel jornal e tinta. É um belo trabalho, suficiente para manter nossa equipe ocupada.”

Como declarou o então redator-chefe ao “The New York Times”: “Se colocássemos nossas matérias na internet, quem iria comprar o jornal na quarta-feira? Acreditamos no papel impresso”. Além disso, o meio não é apropriado: “iPads são excelentes para ‘zapear’ pelo conteúdo, não para ler”. Com o mesmo objetivo de evitar que a identidade do jornal fosse usurpada, abriu uma conta no Twitter, na qual divulga alguns temas da edição da semana. Quem quer ler, paga €1,20 na banca.

Independência institucional

O “Canard” nunca publicou um único anúncio. Afirma que seus jornalistas não precisam ficar preocupados com que alguém possa cancelar uma programação de publicidade. Não tem mecenas ou grupos econômicos que lhe deem apoio. A única receita operacional da empresa, a SA Les Éditions Maréchal, é obtida com a venda do jornal a cada semana e do trimestral “Les Dossiers du Canard Enchaîné”. Fica longe dos bancos e se recusa a fazer dívidas. Não aceita sócios externos. As ações estão nas mãos dos empregados, que não podem vendê-las e, quando deixam a empresa, têm que devolvê-las, para evitar que caiam em mãos desconhecidas.

Quem achar que o “Canard” enfrenta crises econômicas periódicas e mal consegue subsistir, que vive ameaçando fechar e que tem uma redação de jornalistas abnegados que aceitam salários miseráveis, não podia estar mais enganado. O “Canard” é rico e sua redação é, provavelmente, a mais bem remunerada da imprensa francesa.

Apesar de suas idiossincrasias e de seu anacronismo – ou, talvez, por causa deles –, poucas publicações na França e no mundo conseguem alcançar sua rentabilidade. A empresa tem receita anual superior a €30 milhões e lucro líquido que oscila entre €4 e 5 milhões. Seu último prejuízo foi registrado em 1982, quando demorou em reajustar o preço. Os lucros não são distribuídos, mas incorporados às reservas, que chegam a uns €115 milhões. O dinheiro está prudentemente investido. A empresa possui dois imóveis em duas das áreas mais valorizadas de Paris e o resto está aplicado em títulos de renda fixa.

Essa rentabilidade é fácil de explicar: custos baixos e circulação elevada. Redação muito pequena, papel e impressão baratos, gastos com marketing praticamente zero. Nos últimos anos, as vendas oscilaram entre 400 mil e 500 mil exemplares. As revistas semanais “Le Nouvel Observateur” e “L’Express” vendem pouco mais de 500 mil e “Le Point”, 425 mil, com estruturas e custos muito superiores.

O que leva todas as semanas centenas de milhares de franceses às bancas atrás do “Canard” é a irreverência bem-humorada, as charges e caricaturas maliciosas, as informações sobre o lado obscuro do mundo da política e das finanças. O jornal descobriu que nada fere mais a arrogância dos poderosos do que o riso ante suas vaidades expostas. O humor lhe permite publicar coisas que, ditas de outra maneira, poderiam ser muito duras.

Usa uma linguagem direta e de fácil entendimento pelo francês médio. Tem valores em comum com seus leitores e uma espécie de cumplicidade com eles, o que os faz sentirem-se membros de um clube especial.

O “Canard” zela por sua independência. Seus jornalistas não podem investir na bolsa, escrever para outras publicações ou aceitar comendas oficiais. E têm que pagar a entrada do cinema ou do teatro para criticar um filme ou uma peça.

Desde a fundação, o jornal é conhecido, segundo seu historiador, Laurent Martin, pelo não-conformismo, republicanismo, pacifismo, anticlericalismo, antimilitarismo e por resquícios ainda presentes de um suave anarquismo. Tudo isso, permeado por ceticismo. É intransigentemente republicano.

Durante um tempo, namorou com o comunismo, sem aderir a ele. Esteve sempre colocado à esquerda, o que não impediu que a esquerda se tornasse um de seus alvos e que desconfiasse dele. Já foi chamado um “objeto político mal identificado”.

Nos anos 1950, um escritor de extrema-direita disse do “Canard”: “É o mais sério dos semanários de esquerda (…), de bem longe, é o que exerce a influência mais duradoura sobre a política deste país, faz e desfaz reputações”.

Críticos mais ativistas, que veem na imprensa não apenas um meio de informação, mas também de ação, acham que o jornal nada propõe para mudar concretamente as coisas, que a lucidez do “Canard” não leva a nada e que seus apelos à liberdade, à verdade e ao saber não conduzem à responsabilidade ou ao engajamento. Afirmam que, no fundo, sua crítica é estéril. Também foi acusado de sentir nostalgia de um passado que nunca existiu e de ser um jornal excessivamente “franco-francês”, preocupado quase exclusivamente com os assuntos do país.

É hoje o principal praticante do “jornalismo investigativo” na França. Não quer saber a quem uma informação vai beneficiar, mas se é verdadeira, se pode ser comprovada e se é importante políticamente. Mas não publica tudo que sabe. Não divulga informações sobre terrorismo ou espionagem. Em questões políticas, tudo é impresso, salvo a vida pessoal dos políticos. Notícias sobre quem dorme com quem animam as reuniões da redação, mas não são publicadas.

Os principais informantes estão dentro do próprio governo: nos ministérios – não raro, os próprios ministros –, nas várias agências, nos serviços secretos, nas forças armadas e até no Elysée. Como diz Laurent Martin, a relativa marginalidade do jornal e sua independência institucional lhe permitem acolher informações sensíveis que outros meios de comunicação não podem ou não querem divulgar.

Apuração própria

O “Canard” não permite que um advogado leia os textos antes da publicação para evitar processos por injúria ou difamação. Parte do princípio de que um advogado é prudente por natureza, enquanto o jornalista precisa testar os limites. O “Canard” costuma ser processado mas raramente perdeu um processo nos últimos anos.

A lista dos políticos abatidos em pleno voo é longa. Nos últimos anos, caíram vários ministros e secretários de Estado. Um caso notório é o da ministra das Relações Exteriores, Michèle Alliot-Marie, durante a Presidência de Nicolas Sarkozy. Ela e a família passaram as férias na Tunísia voando no jato de um empresário a quem ofereceu apoio.

O “Canard” desvendou dezenas de casos que abalaram governos e empresas. Descobriu que o primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas não pagara imposto durante quatro anos por causa de várias isenções legais. Um diretor da Peugeot se recusava a aumentar os salários dos empregados em 1,5% quando o jornal divulgou que ele reajustara seus próprios vencimentos em 49,6%. Processou o jornal e perdeu.

Há também o caso dos diamantes que o imperador da República Centro-Africana, Jean-Bedel Bokassa, deu de presente ao então ministro da Fazenda, Valéry Giscard d’Estaing, mas divulgado quando era presidente da República. Mais recentemente, o grupo Bouyges, um dos maiores da França, abriu um processo por difamação e pediu uma indenização de €9 milhões depois que o “Canard” informou sobre um inquérito na Justiça envolvendo o grupo em corrupção e tráfico de influência. Perdeu, e teve que indenizar o jornal.

O governo chegou a cair no ridículo quando tentou espionar o “Canard”. Agentes dos serviços de segurança, fazendo-se passar por encanadores, foram surpreendidos colocando microfones ocultos na redação. O jornal publicou o nome de vários arapongas e deu ao incidente o nome de Watergaffe. Posteriormente, afirmou que Sarkozy, que tem verdadeira obsessão com a imprensa, mandou os serviços secretos espionarem alguns jornalistas.

É difícil encontrar um político importante na história recente da França que não tenha sido objeto de seu humor ferino e em quem o “Canard” não tenha pregado um apelido demolidor.

Quando ocupava a Presidência, François Mitterrand era “Tonton” ou “Dieu” (Deus). Sarkozy virou “Sarkoléon” (mistura de Sarkozy com Napoleão), “Sarko”, “le petit Nicolas”, em homenagem a sua baixa estatura, ou “notre super président”. Jacques Chirac era “Jacques Chirioutte”, “Chichi”, “Jacuou le Rockant”. Antes de ser presidente, François Hollande era “Monsieur Royal”, em homenagem a sua ex-companheira, Marie Ségoléne Royal; eleito, Hollande virou “Pèpère” (da sigla PR, presidente da República), e sua atual companheira, Valérie Trierweiler, “Mèmère”. Marion Le Pen, a líder da extrema direita, é “Marionnette”.

Charles De Gaulle era “Mongénéral”, tudo junto, o que levou seus auxiliares a separarem cuidadosamente as duas palavras, quando se dirigiam a ele, para evitar que fossem identificados como leitores do “Canard”. Era também “Le Roi” (O Rei), comparado a Luís XIV, e lhe foi dedicada uma seção extremamente popular, “La Cour” (A Corte), com seus nobres e barões. De Gaulle se referiu ao “Canard” como “este maldito pássaro”. Com seu sucessor, Georges Pompidou, a seção mudou para “La Régence” (A Regência).

O “Canard” publicou os diários fictícios de pessoas próximas ao poder. Entre eles, “Le journal de Cécilia S.”, numa referência à primeira mulher de Sarkozy, sucedido por “Le journal de Carla B.”, com reflexões e observações ingênuas e bem-humoradas, atribuídas a Carla Bruni, atual mulher de Sarkozy. Foi substituída pelo falso diário “Si je mens, de Valérie T.” numa evidente referência a Valérie Trierweiler, a atual companheira de Hollande, mas durou pouco tempo.

Le “Canard Enchaîné” foi fundado em setembro de 1915, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), por Maurice Maréchal, jornalista que escrevia para a imprensa de esquerda. Seu objetivo era informar, divertir e denunciar. Era herdeiro dos “canards” publicados na França durante vários séculos. Queria destoar e caçoar do conformismo e da complacência do jornais com a censura e aliviar as penas de um país em guerra. O nome foi escolhido depois que o jornal do futuro primeiro-ministro Georges Clemenceau, “L’Homme Libre”, mudou seu nome para “L’Homme Enchaîné”, em protesto contra a censura.

Logo em seu primeiro número, o jornal deu o tom que o identificaria durante toda sua trajetória. Ante uma imprensa que publicava como verdadeiras notícias censuradas e pouco confiáveis, o “Canard” declarava a intenção de somente “inserir, depois de uma verificação minuciosa, notícias rigorosamente inexatas. Todos sabem que a imprensa francesa, sem exceção, desde o começo da guerra, só comunica notícias implacavelmente verdadeiras. Pois é! O público já tem bastantes! O público quer notícias falsas. E as terá. Para conseguir esse belo resultado, a direção de ‘Le Canard Enchaîné’ não recuará ante nenhum sacrifício”.

Também desde o primeiro número, se recusou a inserir publicidade. Mas fez uma curiosa campanha de promoção: “Jovens mulheres que querem casar, só casem com um leitor do ‘Le Canard Enchaîné!’“

A censura foi implacável e várias edições circularam com espaços em branco. O que não impediu que o “Canard” denunciasse os que lucravam com a guerra e queriam prolongá-la. Eram os “mercantis”: fabricantes de armas e munições, intermediários astutos, especuladores de toda ordem e os comerciantes arrogantes que passaram a formar uma classe de “novos ricos”. Denunciava a má qualidade do pão, a falta de carvão. Em meio à escassez e ao sofrimento, a denúncia, a ironia e o sarcasmo atraíam leitores. Em 1918, imprimia 40 mil exemplares por semana. Com o fim da censura, mudou o nome para “Le Canard Dechaîné”, (O Pato Desacorrentado) mas só durante oito meses.

A década de 1920 foi um período difícil. A maioria dos jornais surgidos durante a guerra desapareceu. O “Canard” teve que trocar algumas penas para sobreviver. Era anticonformista, se revestia de um certo moralismo e denunciava a corrupção sem perder o humor.

Denunciou os profissionais do patriotismo e guardava distância dos partidos e dos políticos, atacando-os indistintamente, mas defendeu os comunistas e a União Soviética. Deu um apoio inicial à Frente Popular de Léon Blum, mas logo se decepcionou.

Seu pacifismo e sua preocupação com os “mercadores da morte” o impediram de perceber a ascensão do nazismo. Um dos jornalistas viu em Hitler um antigo combatente e, portanto, um partidário da paz na Europa. Segundo o “Canard”, quem alertava contra o nazismo queria levar a França à guerra. Apoiou a invasão da Tchecoslováquia e da Áustria pela Alemanha. Nesse período, a circulação cresceu. Em 1929, imprimia 85 mil cópias, 275 mil em 1936 e 200 mil em 1939, ano em que começou a Segunda Guerra Mundial.

Quando a França foi derrotada, em 1940, o “Canard” deixou de circular. Só voltou às bancas em 1944. Maurice Maréchal tinha morrido; sua viúva, Jeanne, tomou conta da empresa. Vários jornalistas que colaboraram durante a ocupação alemã foram excluídos. No início do pós-guerra, a tiragem disparou, chegando à media de 523 mil em 1946 e a 647 mil em junho desse ano, para cair precipitadamente até 103 mil em 1953.

A causa da queda foi a Guerra Fria. O apoio do “Canard” aos comunistas e à URSS alienou muitos leitores. Um novo redator-chefe, Ernest Raynaud (que assinava R. Tréno), esquerdista, mas não stalinista, mudou a orientação. Ficou menos preocupado com a política e mais com as mudanças na sociedade. Pela primeira vez, o “Canard” reconheceu os expurgos realizados na URSS. Vários comunistas saíram da redação e muitos deles deixaram de comprar o jornal.

Os leitores voltaram com a cobertura das guerras coloniais francesas na Indochina e na Argélia, às quais o “Canard” se opunha. Queriam informações que a maioria dos jornais não publicava e que o “Canard” passou a fornecer. Isso mudou as características do jornal. Até então, opinava com ironia sobre a vida pública, a partir de informações já conhecidas. Era um jornal de opinião, não de informação. Com as guerras coloniais, precisou procurar suas próprias notícias. Este foi o princípio das investigações do “Canard atual”.

Papel ou digital

O “Canard” foi duro com os políticos da Quarta e da Quinta Repúblicas e agressivo contra De Gaulle, de quem temia a concentração do poder. Só admirou, e com reservas, Pierre Mendès-France. Atacou duramente Chirac e Giscard d’Estaing; seus leitores o puniram pela condescendência com o socialista Mitterrand nos primeiros tempos de seu governo. A circulação caiu ligeiramente no último ano: o apagado e circunspecto Hollande é um alvo menos óbvio para um jornal satírico do que o irrequieto Sarkozy.

E o “Canard” no futuro? Sua situação econômica continua mais do que confortável. Mas conseguirá adaptar-se?

Um depoimento de Régis Debray, que foi assessor na Presidência de Mitterrand, pode ser esclarecedor. Ele menciona em suas memórias “o medo da quarta-feira de manhã, dia da aparição de ‘Le Canard Enchaîné’, o jornal oficial da paróquia”. E acrescenta que o “Canard” “mantém seus leitores plenamente informados de nossas canalhices, sem se deixar impressionar por nossos belos discursos (totalmente engessados em valores e ideias)”.

As palavras de Régis Debray deixam claro que uma sociedade precisa de um jornal, em tinta e papel ou em versão digital, que, como o “Pato” atrevido, mantenha a canalha na linha. É mais importante do que nunca.

******

Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição