Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Não ponham a culpa na tecnologia

Muita gente tem tratado as dificuldades da “velha mídia”, jornais e revistas, como decorrência direta das mudanças tecnológicas, ignorando que em princípio elas trouxeram vantagens sensacionais para o trabalho jornalístico.

Os jornais provavelmente foram mais afetados pelo advento da televisão – décadas mais antigo – do que por qualquer outra causa. A televisão e o rádio podem capturar a atenção de pessoas que não dominam a língua escrita. Com isso, sua audiência, num país como o Brasil, é infinitamente maior do que a da imprensa propriamente dita.

Segue-se que a televisão, que tem o fascínio da imagem – e, no caso da Rede Globo, um padrão que cativou as massas –, funciona como gigantesca bomba de sucção de verbas publicitárias. Mais ainda depois que o Plano Real estabilizou a moeda, pôs a inflação basicamente sob controle e ampliou o mercado interno para aparelhos de televisão e os produtos e serviços neles anunciados. E ainda porque os jornais, em vez de travarem a batalha da qualidade, embarcaram na busca do infotainement.

Não foi a internet que emagreceu as redações de jornais. Não até agora. Num futuro talvez ainda distante, quando os hábitos do público tiverem de fato mudado e houver uma maioria plenamente alfabetizada, a internet tende a “sugar” tudo, porque a comprovação da eficácia dos anúncios publicados em meio digital é infinitamente mais precisa do que nos meios onde a publicidade é disparada pouco mais do que cegamente.

Pobreza online

A magreza das redações cria situações esdrúxulas. Examinemos o recorte da primeira página do Estado de S. Paulo de domingo (23/2):

 

 

No canto inferior direito há uma chamada para notícia sobre uma chacina de assaltantes de bancos (assaltantes, suspeitos, ou nenhuma das duas opções, nunca se saberá). Foi na madrugada de sábado (22), numa região de divisa entre São Paulo e o Sul de Minas Gerais. O Estadão deu provas de agilidade ao inserir numa edição dominical a manchete do jornal (protestos de rua em São Paulo na tarde de sábado) e a chamada na primeira página, assim como o próprio material sobre a morte dos nove homens.

Constata-se entretanto que o material publicado na edição online do jornal, apesar da possibilidade de serem acrescentadas informações a qualquer momento, é um conteúdo mais pobre do que o publicado no jornal impresso. Donde se deduz que o problema não é tecnológico, é de operação jornalística.

Ou será que um caso com nove mortes não merecia atenção maior? É a mais grave execução de supostos criminosos desde a “Operação Castelinho”, em 2002, quando 12 supostos integrantes do PCC foram mortos, sob a batuta do então secretário de Segurança Pública paulista, Saulo de Castro Abreu Filho, hoje secretário estadual de Transportes e em vias de assumir a Casa Civil do governador Geraldo Alckmin (PSDB), que exercia o cargo na época, em substituição a Mario Covas (1930-2001).

Registre-se que a Folha de S. Paulo e o Globo nem deram a notícia da nova execução em massa em suas edições dominicais. A Folha online deu material equivalente ao do Estado.

Narrativa policial

No SP-TV de sábado (22), a versão da polícia (mais especificamente do Departamento Estadual de Investigações Criminais, Deic) foi longamente exposta pelo apresentador César Tralli e pelos repórteres César Galvão e Cláudia Mourão (nada menos do que sete minutos de noticiário). Tralli e Galvão não hesitaram em classificar os mortos de “bandidos” e “ladrões” (ver aqui). Na noite de domingo (23), era essa a única referência do portal G1 ao assunto. No site do jornal O Globo, a informação publicada era acanhada (os mortos são chamados aí, alternadamente, de “suspeitos” e “criminosos”).

Com toda a tecnologia disponível, parece que faltaram repórteres, em todos esses veículos, para uma apuração menos esquálida. E, entre os repórteres, embora todos sejam formalmente iguais, alguns são “mais iguais”, como na fábula de George Orwell: o Deic reservou para a TV Globo as informações mais substanciosas (que eram também as que lhe interessava divulgar), prática que contribui para perpetuar a hegemonia da emissora. Pelo menos enquanto os repórteres dos outros meios não aprenderem a depender menos das versões fornecidas pelos órgãos policiais envolvidos.

Nota em 26/2. Um dos "bandidos" mortos não o era. Tratava-se do professor Silmar Júnior Madeira, que, relata a polícia, fora usado como escudo humano pelos assaltantes. Quando a mídia jornalística embarca nos procedimentos policiais típicos, entre os quais figura a desinformação, acrescenta à da polícia a sua própria perda de credibilidade.