Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Editorial

No último domingo [23/2], O Globo publicou um editorial – “A democracia brasileira” – criticando abertamente aqueles que “consideram compreensível, senão justificável o uso de violência em manifestações”. Certamente estou entre esses (embora corrigirei a frase acima, mais adiante), e acatei de bom grado o editorial, porque ele expõe com franqueza a sua perspectiva, e essa honestidade política é um pressuposto para que se ofereçam boas condições aos leitores de julgarem os argumentos e decidirem-se pelos que melhor descrevem a realidade e prescrevem caminhos para aperfeiçoá-la. Vamos então ao debate franco.

Logo na definição de abertura, há imprecisões decisivas. Considerar compreensível o uso da violência é bem diferente de considerá-la justificável. Compreender a violência como a consequência última de uma estrutura social é um dos traços definidores da esquerda. Ao contrário, a direita costuma atribuir a violência a uma responsabilidade individual e isolada. É essa a perspectiva abraçada pelo GLOBO ao defender que não foram nossos problemas sociais que levaram Santiago à morte; “ele foi morto pela ação de Fábio Raposo e Caio de Souza”.

Mas compreender a violência em seu sentido estrutural não implica considerá-la “justificável”, termo de resto ambíguo. Para elucidar sua ambiguidade é preciso atentar para um impasse. Aqui a esquerda se subdivide em diversos olhares. De minha parte, penso que não se pode nunca abrir mão do estado de direito, logo toda violência deve ser punida de acordo com a lei. Mas, sendo essa violência muitas vezes ela mesma decorrente de violências ao próprio estado de direito (enquanto princípio que deveria garantir equidade entre os cidadãos), exercer o direito se torna, embora necessário, injusto. A forma de superar esse impasse é lutando por justiça na origem, isto é, denunciando as violências contra o estado de direito. Insistir em manter-se na violência da ponta implica ser complacente com essa violência originante. A propósito, é sintomático que o editorial não mencione sequer uma vez a PM, cujas ações têm violentado sistematicamente o estado de direito, produzindo reações também violentas, num ciclo sem fim.

Para o editorial, na visão daqueles que critica “a violência se faz necessária” e “é bom que seja assim, porque isso acelerará as transformações necessárias para se chegar a um país melhor”. Corrijo: a violência não “se faz” necessária; o pronome reflexivo, aqui, serve à obliteração da compreensão estrutural. A violência é produzida pelas violências ao estado de direito. E não é a violência que acelerará as reformas, mas o compromisso geral com o aprofundamento da democracia. Alguns consideram que a violência nos protestos é um caminho para forçar esse compromisso; outros não (eu, como disse na coluna anterior, penso que não).

Duas margens

“A democracia não é sinônimo de sociedade mais justa socialmente. Ela é o único meio para se alcançar uma sociedade mais justa”. Creio que os criticados pelo editorial concordariam com esse diagnóstico. A democracia é imperfeita e em constante devir. As tentações de perfeição social só encontram efetividade em totalitarismos. O problema é que a perspectiva do editorial, ao insistir na defesa a todo custo da democracia-como-ela-é no Brasil, acaba comprometendo justamente a ideia de democracia como “meio de se alcançar uma sociedade mais justa”. Assim, concordo que “num país pobre como o nosso não se chega a uma sociedade menos desigual do dia para a noite”, mas (cá estamos andando em círculos) a defesa da democracia não pode ser evocada para impedir o seu aprofundamento, sem o qual a própria ideia de democracia perde sua razão de ser. Esse aprofundamento só será possível por meio de um pacto contra as violências estruturais e originantes ao estado de direito, isto é, à própria democracia.

Diariamente acontecem violências à democracia, atingindo com maior intensidade os mais pobres (mas também a classe média, e até, em menor escala de gravidade, os mais ricos). Todos os dias a polícia – o braço armado da contradição em termos que é nossa democracia seletiva – assassina cidadãos inocentes nas periferias. A diferença é que o assassinato de Santiago traz o fantasma do colapso do estado de direito (que seria o terror para todos), enquanto os assassinatos cotidianos fazem parte da administração da democracia brasileira (que é o terror para alguns).

Não existem apenas essas duas margens. Aqueles que consideram “compreensível o uso de violência nas manifestações” estão comprometidos com uma terceira margem. E acreditam ser ela o melhor caminho para a superação, precisamente, da violência.

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Francisco Bosco é colunista do Globo