Sr. Senador.
Tenho diante de mim o tabloide (com 16 páginas) de polícia da edição do dia 6 do seu jornal, o Diário do Pará. A capa tem duas fotos de cadáveres. Em tamanho maior, o corpo de um cidadão morto a tiros, dados na sua cabeça, que está tomada pelo sangue e com as marcas visíveis das perfurações. Dentro, mais oito fotos de cadáveres, os “presuntos” da linguagem policial.
A manchete do caderno atesta a gravidade do problema: em quatro dias de carnaval, 57 pessoas foram mortas. A violência existe, é grave e deve ser denunciada. É claro que o jornal a explora ainda mais porque assim pensa responsabilizar o governador do Estado, hoje inimigo do dono, pelo assustador índice de criminalidade do Pará e de Belém. Não é uma atitude editorial correta, mas é a usual.
O destaque não tem motivação apenas política: é também um instrumento de marketing, o setor que mais se desenvolve na imprensa do Pará, sobrepujando a redação. Cadáver vende jornal, especialmente entre a faixa do público com menor renda e instrução. Mesmo os jornais que usam esse apelo, porém, contêm o imediatismo da relação. Acho que nenhum jornal no Brasil expõe mais cadáveres do que o seu jornal. Talvez no mundo.
Graças ao sensacionalismo e a oferecer ao público dito da classe C, aquele que entrou no circuito da mídia nos últimos anos, como a novidade do mercado, o que ele quer, o Diário desbancou seu concorrente do primeiro lugar em venda avulsa. Mas há limites comerciais quando o negócio envolve a imprensa, a informação, o jornalismo. É o limite da veracidade, da credibilidade e do respeito ao público. Jornal não é quitanda, embora seja assim considerado por boa parte dos seus donos.
A fórmula é velha, mas, como prova o Diário, pode ser eficaz. Pode também não ser duradoura, exatamente porque jornal não é quitanda. Lida com subjetividades e objetividades, e não com bananas ou pepinos. O público pode ser manipulado e enganado, mas não para todo o sempre. A fórmula pronta aplicada pelo Diário está se exaurindo. O jornal cresceu muito por certo tempo, mas parou. Além de parar, começou a declinar.
É por essa razão que paga caro para ser afiliado ao IVC (Instituto Verificador de Circulação) e não usa seus dados. É porque a sua venda caiu. Não há cadáver que a segure, embora seus editores acreditem na possibilidade de reverter a linha declinante. E haja a multiplicarem os “presuntos”. O jornal é quase uma extensão do IML ou de um açougue.
Lição antiga
Não é só por uma questão comercial que o senhor precisa impor uma linha editorial mais decente ao seu jornal. Como pode argumentar junto ao cidadão(e)leitor que seu filho representa uma mudança na política do Pará, mesmo sendo seu discípulo contrito, se seus veículos de comunicação representam o arcaico, o decrépito e o desrespeitoso em relação à dignidade humana? Não em geral, mas a dos pobres, marginais, sem influência sobre a sociedade e o poder. Só eles.
Pode ser que seus assessores de imagem o convençam de que a manipulação é possível se as aparências são bem tratadas pelo que são: superficialidades, elementos cênicos de uma teatralidade. Talvez o senhor ache que sua sagacidade lhe dá a segurança de repetir o seu jogo político e, como um azarão, surpreender novamente o Estado com uma vitória quase impossível. O senhor já fez isso antes. A conjuntura sugere que a repetição é possível, graças à péssima administração do governador tucano e à falta de nomes alternativos com efetivo poder eleitoral e de respeito.
Num impasse desses a surpresa alcançada pode não ser mais a outra face, e a mesma, de momentos anteriores. Tudo muda para nada mudar. Há apenas o rearranjo de cadeiras na sala do poder. A sucessão não passa de continuidade com outros nomes extraídos do mesmo saco de figuras. No entanto, o impasse pode também levar a uma negação desse quadro viciado, abrindo espaço para um Cacareco qualquer – ou simplesmente para o vácuo, como está acontecendo no Pará. Um Estado rico compromete seus recursos de futuro por falta de visão e pela mediocridade das suas lideranças.
O sangue que escorre das páginas do seu jornal é um sinal evidente, para quem está em condições de ver, do que acontecerá se o senhor, por via indireta (já que pelo caminho supostamente natural, o seu próprio, o acesso foi bloqueado pela maioria do eleitorado), o senhor voltar ao poder estadual. Hélder Barbalho não passará de um simulacro político do pai. Como já ensinou o velho filósofo, se a primeira versão foi um drama, a segunda será tragédia – ou comédia. Ria quem conseguir.
Pobre Pará.
Jornalismo liberal
O grupo Liberal cobrou do prefeito Zenaldo Coutinho a demolição, o interdito ou ao menos a declaração de ilegalidade do edifício Premium, torre de concreto que tirou a visão do prédio que Romulo Maiorana Júnior pretende levantar na orla de Belém. Dentro da lei, o prefeito não pode realizar nenhum desses desejos. Por isso, começou a receber o tratamento condicional dos veículos de comunicação dos Maiorana. Ao mesmo tempo, eles mordem e assopram o alcaide.
Um exemplo estava à vista na coluna Repórter 70 da edição do dia 27 do jornal. Uma nota criticava a intenção da administração municipal de usar as “araras” no trânsito para faturar muito mais com as multas. Em outra nota, elogiava a ação do prefeito na área de saúde.
Na coluna de dois dias antes, o Repórter 70 se valia da velha técnica do jornalismo marrom de não dar nome aos bois e bater no casco e na ferradura. Garantia que entre os compradores da torre na orla do Guajará havia “peixes grandes”, desde um ex-prefeito a um senador. A ser verdadeira a informação, trata-se do ex-prefeito Duciomar Costa e do senador Flexa Ribeiro.
Na nota abaixo, o jornal ameaçava o prefeito: “Ou corta o mal pela raiz, ou responde por omissão”.
Conforme a conjuntura haverá mais ou menos mordidas e sopros. Ou uma delas apenas. A obsessão de Romulo Júnior pelo negócio imobiliário o está levando a pontos de tensão e ruptura com aliados que não quiserem integrar o exército Brancaleone no combate ao estorvo ao Maiorana Towers One.
É uma política perigosa. E que deixa bem explícita boa parte do insucesso do empreendimento.
Jornal liberal só no título
Maria Eulália Sobral Toscano, professora da Universidade Federal do Pará, colocava suas compras dentro do carro, no estacionamento do supermercado Nazaré, na rua São Francisco, no centro de Belém, às 10 horas do dia 1º de fevereiro, quando foi abordada, colocada dentro do veículo e obrigada a seguir os três homens que a acompanharam. Começavam suas três horas de agonia até ser deixada na estrada de Mosqueiro, sem o carro, sem os pertences e com saques feitos na sua conta.
No dia seguinte a professora de linguística denunciou o fato e alertou os frequentadores do seu facebook para o perigo a que estariam sujeitos no estacionamento do Supercenter Nazaré, um dos mais requintados da cidade. Seu filho compartilhou o post e informou que a direção do supermercado aumentou a segurança do estacionamento, reforçando o número de vigilantes “e tudo mais”. Assim, talvez pudesse vir a inibir episódios como o que a própria Maria Eulália relatou: “Há dias um amigo meu postou que sua esposa, com um filho de colo, foi abordada no mesmo estacionamento com arma e ela meteu o pé no acelerador, em risco de acontecer uma tragédia”.
O sequestro relâmpago da professora foi divulgado e comentado por uma amiga e colega de magistério. Na sua coluna em O Liberal do dia 9, Amarílis Tupiassu observou que Eulália pode ter sido a quarta vítima de assalto no mesmo local. Não chegou a citar o nome do supermercado, dando-lhe apenas o endereço. Mas já no dia seguinte alguém da direção do Nazaré entrou em contato com a redação do jornal para contestar o artigo, pedindo a retratação. Não reconheceu algumas das informações. Amarílis foi informada sobre a reação da empresa. Deveria sair um informe publicitário com a versão do supermercado.
Mas o que o jornal publicou foi um direito de resposta agressivo. O Nazaré achava que a colunista tinha contrariado “até mesmo a conduta profissional dos veículos das Organizações Romulo Maiorana” e infringido “um dos princípios básicos da ética: o direito das pessoas à informação verdadeira, pautada em fatos investigados e não em opiniões infundadas”. Por ser amiga da vítima, Amarílis, “no calor da emoção, de forma totalmente passional”, teria escrito “absurdos e inverdades”.
A empresa negava que não houvesse câmeras de televisão (garante possuir “um dos melhores sistemas de monitoramento” do país) ou que os assaltos já fossem repetidos no estacionamento (que jamais teria tido episódio assim). Mas confirmou a principal – e essencial – informação do artigo: o sequestro da cliente dentro do estabelecimento. Se outros componentes da situação eram incorretos, cabia à empresa esclarecer os fatos. Mas ela preferiu agredir a colunista.
Uma coluna como a de Amarílis Tupiassu é de opinião. É protegida pela tutela constitucional à liberdade de expressão. Devia pelo menos ter a oportunidade de se manifestar sobre o direito de resposta do supermercado, eventualmente corrigindo erro ou contestando as afirmativas da empresa. Mas o jornal que publicava seus textos há sete anos não reconheceu esse direito.
Pelo contrário: alegando não ter recebido a coluna do domingo seguinte e cobrando seu reenvio, depois de divulgar com certo estardalhaço a resposta do Nazaré, criou uma situação de constrangimento que levou Amarílis a decidir não escrever mais no jornal seus dois artigos semanais. Um saía às sextas-feiras, na companhia de Luzia Álvares, e outro no caderno dominical feminino.
No seu artigo das segundas-feiras, logo depois da nota do Nazaré, Luiz Carlos Rodrigues manifestou sua decepção ao lê-la: “São as ambiguidades da nossa constituição cidadã, a alimentar a fúria judiciosa de nossos advogados, quando nos dá o direito de criticar ações ou omissões de terceiros, e aos juízes o poder de julgarem quando e em que dosimetria os limiares da injúria foram invadidos. Teme-se que a corda arrebente no lado mais fraco: do jornalista. E tome-lhe de condenação à indenização por danos morais. Daria, entonces, para arrotar aos quatro ventos que vivemos num estado de direito democrático, onde a liberdade de expressão seria o pilar básico?”
Na redação de O Liberal, quando os interesses comerciais, políticos ou pessoais dos donos estão em jogo, a liberdade fica na porta.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)