Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O embuste da manchete velha

A manchete do jornal O Globo de quarta-feira (12/3), “Policiais de UPP são cercados e agredidos na Rocinha”, já seria uma aberração, por destacar um fato que aconteceu quase três meses atrás como se tivesse ocorrido na véspera. O texto da chamada é escrito de modo a reforçar essa impressão de atualidade: refere o vídeo exibido “ontem” no Jornal Nacional, gravado por uma câmera de segurança, que documenta o ataque aos policiais. Apenas na página interna o leitor é informado de que o fato se deu no dia 25 de dezembro do ano passado.

Mas a aberração é ainda maior, porque o próprio jornal noticiou essa história adequadamente, no dia seguinte ao ocorrido (26/12/2013), em manchete de página interna, com foto e tudo.

É importante expor as duas páginas, para deixar registrado esse absurdo.

 

 

 

 

Não é novidade que O Globo se pôs a serviço do projeto de “pacificação” do secretário de Segurança do Rio. Desde a implantação da primeira UPP, em fins de 2008, mas principalmente no momento em que essas unidades foram instaladas em favelas maiores e mais problemáticas, como o Alemão e na Rocinha, o jornal bancou o discurso triunfalista da “retomada de território”, como se, da noite para o dia, as forças do mal tivessem sido afastadas e os moradores passassem a viver em paz.

Propaganda em vez de jornalismo

Se fizesse jornalismo, como fez quando investiu na premiada série sobre os brasileiros que ainda vivem na ditadura, em 2007, O Globo teria a obrigação de tentar perceber o sentimento dos moradores. É difícil, porque as pessoas não dizem facilmente o que pensam, principalmente quando sabem que podem sofrer represálias, seja de traficantes, milicianos ou policiais. Mas bastaria pensar no papel histórico da polícia na repressão aos marginalizados – desde a caça aos escravos fugidos no tempo do Império – e na formação do policial, na maneira pela qual ele enxerga o morador de favela – e vice-versa –, para entender que essa relação é sempre tensa e conflituosa, por melhores que sejam as intenções.

Mas, não. O jornal preferiu o caminho da propaganda, mesmo diante das evidências em contrário: confrontos que eventualmente resultam em mortes, tiroteios que fecham comércio, e agora os assassinatos em série de policiais na região do Alemão. Sempre, em todas as ocasiões, o jornal sustentou o discurso da autoridade: aquelas eram demonstrações do desespero dos traficantes diante do sucesso da política de “pacificação”. Mesmo o famoso caso Amarildo teria sido apenas um desvio de rota, e não um emblema do ponto a que pode chegar a humilhação da autoridade contra os subalternos.

Faz lembrar o relato de Fernando Gabeira em O que é isso, companheiro?, sobre a convicção religiosa das organizações de guerrilha que começavam a ser destruídas pelas forças de repressão durante a ditadura e que, diante da morte de Lamarca no interior da Bahia, tentavam manter o discurso vitorioso: se o projeto era levar a luta para o sertão, aquele episódio confirmaria o acerto da estratégia, pois “já estamos morrendo no campo”.

O secretário de Segurança fala grosso, afirma que não vai tolerar mais mortes de policiais. No mesmo dia, o subcomandante de uma UPP na região do Alemão é assassinado. Mas o discurso continua, inabalável, na base do “isso não vai ficar assim”, “vamos perseverar”. “No pasarán”.

Legalizar as drogas

Ninguém toca no ponto crucial que está na origem dessa violência: as disputas pelo comércio ilegal de drogas e a repressão a ele. Já temos uma razoável coleção de estudos e depoimentos favoráveis à legalização das drogas, reportagens com especialistas já foram realizadas e provocaram polêmica, mas quando se trata de UPP esse detalhe é simplesmente desconsiderado. O jornal, como sempre, simplifica as coisas, reduzindo-as a uma briga de gato e rato, polícia e bandido. O bem contra o mal.

“O Alemão era o coração do mal.” Quem se lembra desta declaração do secretário? Foi há pouco mais de três anos, em novembro de 2010, quando, depois de dias seguidos de confronto entre traficantes e policiais, as forças de segurança cercaram a região e entraram no conjunto de favelas, botando os bandidos para correr. E agora?

A tendência é que os confrontos recrudesçam. Talvez isso ajude a entender a aberrante “atualização” do conflito ocorrido na Rocinha no Natal do ano passado: quem sabe O Globo, na esteira da tardia exibição do vídeo no Jornal Nacional – tardia por que, talvez nunca se saiba –, resolveu pegar um gancho para botar mais gasolina na fogueira e ajudar a montar um clima favorável à justificativa de medidas mais duras de repressão nessas áreas.

Os leitores que enviaram cartas ou comentaram a manchete alarmista na página do jornal no Facebook não perceberam que a manchete era velha. Menos ainda se lembrariam que o fato já havia sido noticiado ali mesmo, quase três meses antes.

O Globo abriu aquela chamada de capa mencionando uma “nova estratégia do crime contra a pacificação”. Talvez tenha inaugurado, também, uma nova forma de manipulação, com essa estratégia de atualização que ludibria o leitor e agride as normas mais elementares do jornalismo. Recorda os velhos tempos em que era possível jogar às favas todos os escrúpulos de consciência.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)